13 de janeiro de 2014

Azul É A Cor Mais Quente (Abdellatif Kechiche, 2013)


    Adèle pode até preferir esconder seu diário e seus sentimentos, mas o modo como o diretor, Abdellatif Kechiche, conduz o filme faz parecer que estamos lendo o diário da personagem principal. Testemunhamos uma quantidade esmagadora de eventos da juventude de Adèle, e alguns daqueles que não são mostrados são justamente os que ela queria encobrir, como o envolvimento com o professor-colega e os pequenos rolos que ela teve (será?) após se separar de Emma. Além de proximidade, isso demonstra uma espécie rara de comprometimento e sinceridade do diretor para com a personagem principal, sem sentimentalismos ou manipulações baratas.
      Narrativa à parte, essa proximidade fica óbvia pela maneira como Kechiche filma a estória, com praticamente todas as tomadas em planos fechados ou close-ups (mas abrindo-os em momentos-chave, claro, geralmente para demonstrar solidão), correspondendo visualmente ao teor de intimidade do que se passa na tela e fazendo o espectador se sentir dentro da vida de Adèle (mesmo Emma só é vista sob a perspectiva de Adèle) em seus mínimos detalhes, virtudes e vícios (comer de boca aberta!) de uma forma que seria claustrofóbica se não fosse executada de forma tão sensível e eficiente. A preferência aos planos fechados também acaba contribuindo com a fluidez da montagem. Ao não pontuar a transição entre as cenas com planos abertos ou stablishing shots, o diretor não nos dá aquele velho código de transição entre uma cena e outra (hoje em dia, é a hora em que as pessoas olham o celular pra ver quanto tempo de filme já se passou), dando uma importância mais uniforme às tomadas e evitando a quebra de ritmo. No fim das contas, há tanto equilíbrio na montagem que praticamente nada parece desnecessário, mesmo com três horas de filme. Até as longas cenas de sexo, por mais direto-ao-ponto e “atuadas” que possam parecer, se justificam por estabelecer um contraste entre o relacionamento de Adèle com seu colega de escola, que nem se importa com o prazer dela, e o com Emma, que mostra uma troca mútua de carinho. A paixão demonstrada pelas duas nas cenas de sexo também torna o amor entre elas mais convincente, e, por consequência, a dor da separação ainda maior. A fragilidade e a entrega que as duas atrizes principais passam e a química entre elas é essencial para o filme, e os close-ups constantes dão realce às emoções contidas nos rostos das duas.
       Kechiche também mostra uma atenção no uso das cores e dos sons que reforça a narrativa, mostrando as mudanças e sentimentos de Adèle de outras formas. O azul, obviamente, é associado não só aos olhos e principalmente ao cabelo de Emma, mas também à ideia que Adèle tem de amor à primeira vista, coisa que ela só conhecia pelos livros. Adèle usa uma echarpe com detalhes azuis quando termina o relacionamento com o colega de escola, e se veste cada vez mais de azul quando começa o namoro com Adèle. Quando o relacionamento das duas está bem, até os lençóis e acessórios de cama são predominantemente azuis. Após a separação, Adèle volta a usar roupas azuis, e até chega a ficar completamente envolvida pelo azul do mar após a separação, numa das cenas mais bonitas do filme. No encontro com Adèle num café, Emma é iluminada por uma forte luz azul enquanto passa, como se Adèle só pudesse ter um vislumbre da antiga Emma antes dela partir. Quando Emma muda seu cabelo para loiro, o amor dela por Adèle já parece estar em declínio, e o amarelo acaba sendo associado ao amadurecimento de Adèle e ao término do relacionamento das duas, assim como o vermelho. Quando Adèle trai Emma pela primeira vez, ela o faz sob uma forte luz vermelha. Posteriormente, Emma abandona o azul que tingia seus retratos de Adèle em favor do vermelho nos retratos de Louise. Nessa hora, o diálogo deixa o jogo de cores explícito demais, mas nada que chegue a estragá-lo. Os raios de luz solar que ofuscam a lente também são usados de forma planejada. Eles aparecem timidamente quando Adèle dispensa seu colega de escola, e vão ficando mais aparentes conforme o amor de Adèle por Emma aumenta. Quando elas se separam, a luz solar diminui drasticamente, até se tornar algo longínquo no horizonte ao final, como uma promessa distante de felicidade. Outro elemento que volta no final é a música que Adèle ouve na rua ao conhecer Emma, no único uso de som não-diegético do filme, funcionando como que um lembrete da dor nostálgica de Adèle e um indicativo de um novo começo, talvez.
          A decisão de não usar uma trilha sonora que manipulasse as reações do espectador e dar preferência às cores para dar suporte emocional à estória é louvável e torna a inserção de uma música no final desnecessária, mas o filme podia muito bem terminar com You're A Big Girl Now, de Bob Dylan. Sua letra, que retrata a dor e fragilidade de um homem que se vê envolto em tristeza após terminar um relacionamento e reconhece que é menos maduro que sua ex para lidar com isso, casaria perfeitamente com a estória de Adèle. Mas não é só uma questão de Emma ser mais madura que Adèle. Ao fim do filme, uma transformação dá a impressão de ter ocorrido Adèle também, e ela parece ter crescido de alguma forma, deixando de ser uma menina no fim da adolescência e se tornando uma mulher. Assim como alguma coisa pode mudar no espectador que se deixar marcar por esse filme.

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