26 de agosto de 2014

Amantes Eternos (Jim Jarmusch, 2013)


Meu Deus, será que Jim Jarmusch resolveu finalmente fazer jus aos seus cabelos eternamente brancos e se tornou um velhinho ranzinza? Não que filme seja chato ou antiquado, longe disso. Aos 60 anos, o diretor se mantém absurdamente cool, hip, entre outros adjetivos semelhantes. É que, mais do que uma “estória de vampiros”, este é um filme profundamente nostálgico, saudoso. E que forma melhor de tratar de nostalgia do que através de vampiros, esses seres soturnos, melancólicos, que tratam o passado com reverência e saudosismo e o futuro com desdém e desesperança?

Esta nostalgia, tão preciosa ao filme, é tratada de diversas formas. Em primeiro lugar, ela está na forma do casal de vampiros de se referir ao presente, sempre como uma época estragada pela estupidez dos “zumbis” (forma sarcástica e resignada de se referir aos humanos), que fazem guerras por motivos mesquinhos e contaminam a água e seu próprio sangue, só para citar algumas coisas. Esta visão do presente como algo decadente também está no próprio olhar de Jarmusch sobre as cidades principais do filme: Detroit e Tangier. De certa forma, os travellings laterais com a câmera passeando e vendo a cidade pelo vidro do carro são os mesmos de Uma Noite Sobre A Terra (1991) e do início de Daunbailó (1986), porém mais carregadas de um afeto pelas partes mais esquecidas das cidades, com marcas visíveis da passagem do tempo. Obscuras, sim, mas ainda vivas e pulsando história. De fato, as duas cidades são colocadas como lugares que já ultrapassaram seu auge, mas ainda guardam traços da beleza e graça de outrora, como os próprios vampiros.

Além disso, o casal de vampiros, formado por Adam (Tom Hiddlestone), uma versão menos tímida e mais sombria de Jimmy Page (com o truque do arco de violino na guitarra e tudo) e Eve (Tilda Swinton),  uma mulher carinhosa e apreciadora da literatura e da natureza, transparece nostalgia também no seu gosto pela arte - principalmente a música - e por instrumentos musicais antigos. Mas a arte não é a única coisa lembrada com saudosismo, já que Adam menciona, em tom melancólico, o fato do lugar onde Henry Ford fez seu primeiro modelo ter se tornado um suntuoso teatro e depois um estacionamento. Assim, a crítica se estende ao fato de os “zumbis” não tratarem com respeito seu próprio passado, ao contrário do que fazem os vampiros, se lembrando de coisas que aconteceram séculos atrás. Essa nostalgia acaba sendo também uma forma de escapismo, com o casal frequentemente remetendo ao passado, o que os faz esquecer do futuro obscuro à frente, e os afasta do presente tedioso.

Assim, a irmã mais nova de Eve, Ava (Mia Wasikowska), aparece como uma antítese dos traços e ideias do casal. Impetuosa e irresponsável como uma adolescente, ela faz o casal parecer mais maduro por contraste ao desrespeitar a “ética dos vampiros” e matar Ian sem motivo plausível. Somando-se isso à suas referências ao Youtube e a downloads e pode-se inferir que ela representa parte do que há de pior na era digital, não demonstrando nenhum interesse pela erudição e pela apreciação da arte, tão importante à sua irmã e ao seu cunhado. A própria cidade que ela escolheu para morar, Los Angeles, é um reflexo irônico de sua imaturidade. L.A., lar de Hollywood e suas celebridades e holofotes, é o oposto de Detroit e Tangier em termos de nostalgia e relação com o passado – ao contrário do que o Oscar faz parecer nos últimos anos. A irresponsabilidade de Ava e o fato de ela ser o que mais chega perto de causar a morte do casal (mesmo que indiretamente) mostra uma clara predileção do diretor por Adam e Eve, e acaba sendo uma sarcástica cutucada do diretor contra a indústria do cinema mainstream americano, que ele claramente desdenha.

Esse tipo de sarcasmo ácido está presente ao longo de todo o filme, e é um dos fatores que o impedem de se tornar apenas mais um lamento saudoso. O exemplo mais óbvio é de quando o corpo de Ian é queimado no ácido, levando Eve a exclamar: “wow, that was visual”. A piada funciona justamente porque não se assiste um filme de Jarmusch com a expectativa de se ver uma cena com efeitos especiais tão destacados. O diretor também brinca com convenções ao mostrar um trecho de clipe de TV de 1975 com a música “Soul Dracula”, com um vampiro caricatural e bizarro, mas não muito longe das bizarrices que temos visto associadas ao mito dos vampiros nos últimos anos. Outra cutucada irônica vem quando Adam diz esperar que a ótima cantora libanesa (Yasmine Hamdan) que ele vê num bar não fique famosa, pois “ela é boa demais pra isso”. Afinal de contas, por mais que Jarmusch tenha se mantido sempre marginal, a postura de Adam em relação à sua música é extrema até mesmo para os padrões do diretor.

Esse posicionamento forte de Adam em relação à música exemplifica bem não só a importância que ela tem para ele, mas para o filme como um todo também. Aqui, a música aparece como uma forma de mostrar nostalgia (tanto Adam quanto Eve adoram a música pop e o rock dos anos 1950/60/70 mais que qualquer música contemporânea, com exceção de Jack White, que sempre pareceu fora de seu tempo mesmo), de expressão pessoal (principalmente para Adam) e de escapismo (Adam se fecha em seu mundo musical para tentar superar o tédio de se viver por séculos e séculos e séculos). A trilha sonora também é essencial para os close-ups em câmera lenta de quando os vampiros tomam sangue (entre as melhores cenas do filme), com os riffs hipnóticos e distorcidos reforçando a ideia mostrada na expressão dos atores de que, para os vampiros, beber sangue é perder a noção de tempo e espaço e se entregar a um vício, em êxtase, como se eles fossem viciados em drogas.

No geral, a trilha sonora junta bem o barulho industrial sujo de Detroit com os sons misteriosos e elegantes de Tangiers, atuando como mais uma forma de união entre Eve e Adam – além da separação de cores entre branco/amarelo para Eve e preto/azul-escuro para Adam que os fazem parecer representações de yin-yang. É um plano de fundo musical atmosférico, e, acima de tudo, essencial ao filme e ao que o torna memorável.

Outro fator que se destaca é o senso de romantismo – primeiro no sentido artístico da palavra - nos personagens principais, evidente no seu escapismo como forma de fugir da realidade, na sua postura contra o industrialismo descontrolado e na importância dada aos sentimentos “verdadeiros” (mostrada no discurso anti-suicídio de Eve). Pegando pelo sentido mais comum, a relação dos dois parece autenticamente amorosa e fiel, ainda que complicada, ao contrário de outros casais de vampiros de filmes, que geralmente parecem engessados e falsos, ou com um claro domínio do homem sobre a mulher, o que não ocorre aqui. Jarmusch até se permite brincar com o clichê dos vampiros como senhores de modos antiquados e corteses na cena do reencontro, mas a verdade é que os personagens principais recebem uma construção justa, ou pelo menos melhor que em outros filmes do gênero.

No fim das contas, as mordidas que os salvam também são românticas, não só por serem feitas no modo da rua, como antigamente (“isso é tão século XV”), mas também por serem possibilitadas pela possibilidade de amor do casal marroquino, e por selá-lo como mais um par de “amantes eternos” através dos séculos. Numa época em que parece antiquado e ultrapassado um casal passar mais de dez anos juntos, não há como isso não parecer romântico, o que é complementado com o “excusez moi” de Eve antes do ataque.

Por mais que o ato final e o filme como um todo mostrem falta de consideração com os “zumbis” e suas vidas, a tentativa de Adam ver sua arte ser lembrada ao longo dos tempos (“just to see if it would echo back”) diz justamente o contrário. Isso porque dessa forma ele mostra que a construção da memória da humanidade e da história de sua arte podem até ser motivo de desapontamento, mas ainda assim são processos que merecem interesse e atenção, mesmo de um vampiro como ele. E não é essa uma indagação que comum a todo artista em algum momento? E este filme, como será lembrado?
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22 de agosto de 2014

O Grande Hotel Budapeste (Wes Anderson, 2013)


A narrativa do filme pode até ser baseada numa estória escrita pelo autor lida por uma menina, que é baseada na estória que ele ouviu, que por sua vez é baseada no que Zero viveu, mas o contador de estórias principal aqui é o próprio Wes Anderson, que parece ter se superado nesta empreitada. A aventura de Zero e do Hotel Budapeste é grandiosa, quase épica, mas contada de uma maneira tão sutil e despretensiosa que desarma e encanta o espectador com facilidade.

Mas não se pode confundir essa sutileza com carência, já que há no filme uma estética bastante rigorosa e particular evidente em vários aspectos (de fato, só sendo muito rigoroso para usar três formatos de tela diferentes para três linhas temporais diferentes), desde o ritmo e linguajar dos diálogos até a geometria das composições e figurino dos personagens, todos marcados por uma mistura de delicadeza, exagero e finesse que deixam claro a assinatura do diretor. Além disso, eles funcionam em papéis e trejeitos bem definidos, como peças de um tabuleiro de xadrez, sempre com um ar de decoro e elegância, e suas características aumentadas de proporção com exagero, como as caricaturas humanas dos filmes de Fellini.

Entretanto, esse rigor na pose dos personagens e na composição dos cenários é constantemente contrastado e desafiado por descontrole emocional e comportamentos que não condizem com diversas situações, além de uma exploração dos espaços feita com movimentos de câmera e mudanças de perspectivas frequentes. Com isso, o filme desafia as expectativas do espectador e o mantém alimentado com surpresas e novas informações a todo o instante, mesmo que apresentadas de forma discreta. A capacidade do diretor para lidar com piadas visuais em particular é impressionante, como na cena em que Zero se depara com o portão gigantesco da prisão, e só depois percebe que ele é minúsculo, através de uma mudança de perspectiva/plano.

Assim como em Moonrise Kingdom (2012) Anderson demonstrava nostalgia pelo espírito de revolta juvenil dos anos 1950/60, aqui ele apresenta uma Europa idealizada, prestes a ser tomada pela sombra do fascismo e pela modernidade. Uma Europa onde certo senso de pomposidade e requinte ainda são possíveis. Nesta fantasia, o mal é personificado nas figuras da família Desgoffe und Taxis, enquanto o Monsieur Gustave, com toda a sua elegância culta e seu perfume (“L’Air de Panache” – não poderia haver nome melhor) representa o espírito fantasioso do Hotel. Nesse sentido, o próprio fato do escritor não ter voltado lá reforça a ideia de uma realidade idealizada, ilusória, perdida no tempo.

Outros sinais da nostalgia de Anderson pelo passado e de seu tom leve estão presentes na sua preferência por filmar maquetes e brinquedos para cenas de exterior, e nas cenas aceleradas artificialmente como recurso cômico. No caso, seu olhar se volta para as comédias do cinema mudo, ou seja, o cinema da época retratada na maioria do filme.

Temas tensos ou complicados como guerra, assassinato e descoberta do amor até são incluídos no filme de tempos em tempos, mas tudo é colocado de uma maneira irônica, cínica e leve. Ou seja, sob os óculos cor-de-rosa de Wes Anderson. Mesmo assim, uma melancolia leve pode ser percebida aqui e ali, ainda que o diretor nunca caia no melodrama. Quando não servem como exercícios de estilo (recitação de poemas por M. Gustave e Zero) ou amostras de fofura (cenas de Agatha com Zero em geral), as demonstrações de afeto são usadas como recurso cômico (M. Gustave e Zero em frente à prisão).

Novamente, o elenco é repleto de participações de estrelas e atores da “Companhia de Teatro de Wes Anderson” (assim como Bergman tinha uma trupe própria), mesmo que seja só por uma ou duas cenas (como Bill Murray). Mas nada disso funcionaria sem a atuação de Ralph Fiennes, que rende um M. Gustave fascinante, numa mistura de charme, vulgaridade e pompa. Mas a revelação Tony Revolori também rouba a cena em várias cenas como o estranho-porém-carismático lobby boy Zero.

Outra figura que volta a marcar presença é o compositor Alexandre Desplat, que produz uma trilha sonora delicada, leve, estilosa e até um pouco pomposa, que casa perfeitamente com o espírito do filme – ou é essencial para construí-lo. A trilha também está em ótima sintonia com o ritmo, mantendo-o em movimento, com cenas, detalhes e piadas entrando e saindo da tela sem pausa para respirar. Desplat também adiciona uma variedade de cores e estados de espírito ao filme, como quando capricha na atmosfera de terror nas cenas de perseguição e assassinato, ou dá um toque lírico e romântico às cenas de Aghata com Zero.


Já a câmera se faz ainda mais ativa e presente que no filme anterior, com frequentes movimentos laterais e precisos que revelam novos detalhes às cenas, ou longos zoom-ins – duas coisas que lembram o estilo de Stanley Kubrick. E assim como nos filmes de Kubrick, os poucos close-ups são usados a grande efeito, sendo o mais notável deles um plano lindo que mostra o rosto de Saoirse Ronan (Aghata) sendo iluminado por várias lâmpadas coloridas enquanto ela gira num carrossel lentamente. Um plano daqueles de se transformar em pôster e colocar na parede.
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20 de agosto de 2014

Irreversível (Gaspar Noé, 2002)


(caralho, que porrada...)

Gaspar Noé filma esta estória como o Destino com a faca na mão do poema de Arseni Tarkovsky (“Primeiros Encontros”), inquieto, pairando pelo cenário como um espírito maligno à espreita.

E a decisão de encadear as cenas de trás pra frente é genial, porque reforça justamente a impossibilidade de se parar esse espírito maligno, e o fato dos personagens estarem presos nesta armadilha do Destino. Podemos até saber o que acontecerá no futuro, mas somos impotentes diante da inevitabilidade em tudo o que é mostrado. As cenas mais chocantes e perturbadoras podem até estar focadas na primeira parte do filme, mas isso não priva a segunda de impacto próprio, já que ela não é meramente explicativa. Afinal, “explicar” coisas horríveis como as que acontecem no filme é impossível.

O que esse movimento contrário consegue é realçar o sentido de tragédia na coisa toda, colocando um tom de lamento sob os momentos felizes do casal. Nunca os horrores são colocados como punição, ou para fins exploratórios, e sim como uma visão brutal-porém-honesta da fragilidade humana diante de forças que não pode controlar, venham elas de seres humanos ou de coisas além.

Vista na ordem normal, a vingança ganharia mais importância e justificativa, apesar da irônica confusão na identificação do estuprador. E o fato de realmente podermos enxergar as cenas sob um outro olhar por causa da ordem inversa é o maior trunfo do filme.

Narrativa à parte, o uso da técnica de Noé é ótimo, com a forte luz vermelha e o ambiente claustrofóbico fazendo as idas à boate Rectum e ao metrô parecerem verdadeiras descidas ao Inferno. A música também contribui muito para a variação de estados de espírito (moods) do filme, e é essencial para dar aquela sensação hipnótica, catártica, de algo do qual não se pode escapar que é tão preciosa a Noé, que conduz seus filmes como uma experiência extrassensorial ou sinestésica (ou alucinógena) mais do que qualquer outra coisa - ou não usaria vibrações sonoras impossíveis de serem ouvidas na primeira metade do filme para causar uma sensação de náusea no espectador.


Da mesma forma, a câmera passa a ideia de “inescapabilidade” ao seguir os personagens sem trégua, em planos que se alongam por vários minutos, dando a impressão de que um espírito os segue e os observa de perto. Os movimentos são bastante arrojados em alguns momentos, mas as partes mais violentas não são enfeitadas, sendo mostradas com pouquíssimo movimento, de uma forma mais “real”.

Por mais que as imagens possam ser perturbadoras, há uma beleza estranha contida no empenho de Noé de nos levar numa viagem, numa hipnose, mostrando partes sombrias e brutais da natureza humana - facetas que a grande maioria dos diretores finge não existir e acha "negativo" ou "tabu" demais de explorar -, sim, mas não sem apontar para momentos de redenção, como na bela cena final, ou deixar claro seu tom de lamento por trás da provocação. Claro, ver o casal (maravilhosamente) interpretado por Monica Belucci e Vincent Cassel conversando bem-humoradamente sobre seus hábitos sexuais no metrô parece sarcástico de uma maneira nada agradável, considerando o que se passou antes disso (narrativamente falando, não temporalmente), mas isso não significa que Noé seja um sádico, ou alguém com uma visão totalmente fria. 

Sim, é preciso ser incrivelmente frio para manter a câmera parada filmando (ou encarando) uma personagem ser brutalmente estuprada, mas essa frieza se faz necessária e é até bem-vinda a partir do momento em que o filme consegue ultrapassar essa brutalidade (da qual muitos desviam o olhar) para explorar a existência humana em sua efemeridade, selvageria e até beleza.
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18 de agosto de 2014

O Homem Errado (Alfred Hitchcock, 1956)


Desprovido do glamour e da pompa vindos das “classes altas” ou o clima de sedução que marcam a maioria dos filmes de Hithcock dos anos 1950, este longa é provavelmente o mais duro e cru de toda a filmografia do diretor, sendo ou não “baseado em fatos reais”. Nem mesmo o típico humor britânico (ou mórbido-porém-espirituoso) de Hitch tem vez aqui. Sua aparição-relâmpago é logo no começo do filme, num tom sombrio, anunciando um filme baseado numa realidade mais estranha que a ficção. O filme tem duas cenas com risos de personagens, mas nenhum deles é provocado por um motivo propriamente engraçado: a primeira vem das meninas anunciando tragicamente que um homem que poderia ser uma testemunha-chave morreu, e a outra é uma gargalhada nervosa de Rose – talvez o princípio de seu colapso nervoso – quando se sabe que outra possível testemunha está morta.

O modo como Hitchcock consegue parecer tão duro, mais do que através do roteiro, é por meio de uma estética que prioriza a perspectiva em primeira pessoa e a transmissão da visão dos personagens – principalmente do personagem principal, Manny - como em poucos filmes de Hitch. Assim, as imagens são essenciais para contar a estória e muitas vezes são mais importantes ou eficazes nisso que os próprios diálogos. Um exemplo é a ótima cena logo no começo do filme em que Manny vai à agência e a edição sugere desconfiança e medo por parte dela, sem diálogos, usando apenas o bom e velho efeito Kuleshov. O diretor filma esse tipo de ação com maestria, com vários planos destacando algemas, grades e cadeados (remetendo à prisão), ou coisas menos óbvias mas igualmente “eficientes” como os sapatos maltrapilhos dos homens à caminho da prisão e a mão manchada com tinta preta após o recolhimento das digitais. Todos esses são elementos aparentemente simples, mas que sugerem bem a angústia de um homem inocente diante do horror da prisão.


Mas por mais que as imagens sejam importantes ou o silêncio seja usado com frequência, não há como negar o ótimo trabalho de Bernard Herrmann na trilha sonora do filme. Assim como Hitch, aqui o compositor deixou de lado parte da sofisticação e elegância de seu estilo em favor de uma abordagem mais enxuta. O resultado é uma trilha que, além de transmitir o medo e receio de Manny, lembra frequentemente o espectador do tom duro e quase sombrio do filme. A cena da primeira noite de Manny na cela, em particular, mostra um casamento maravilhoso da trilha com a imagem, quando a câmera gira desnorteada e a música dá loops cada vez mais desesperados enquanto Manny agoniza dentro da cela, num momento digno dos melhores filmes de Hitchcock.

Toda essa crueza e tragédia marcam uma diferença clara deste filme com longas similares de Hitch. Ladrão de Casaca (1955) e Intriga Internacional (1959) são exemplos de filmes em que o protagonista é acusado de algo que não fez por azar ou “destino” e se vê obrigado a provar sua inocência. Mas enquanto os protagonistas dos filmes citados são charmosos, confiantes e capazes de proezas dignas de um James Bond, Manny é modesto, humanamente frágil, apesar de determinado, e impotente diante dos infortúnios que o destino lhe prega. Até seus pares românticos diferem. Se as mulheres de Cary Grant nos filmes citados são sedutoras, perigosas, e ajudam o protagonista apesar de serem “donzelas indefesas” até certo ponto, a mulher de Manny, Rose, é terrena, amorosa, centrada na família, até o momento em que tem um colapso nervoso e adiciona mais requintes de crueldade ao destino de Manny.


De certa forma, as diferenças entre esses filmes também parecem tornar O Homem Errado mais próximo de Hitch. Cary Grant é o que Hitchcock queria ser: seguro, galanteador e atraente, enquanto Henry Fonda parece estar mais próximo do que Hitch realmente é: um homem honesto, mas atribulado e com uma grande carga de sentimento de culpa. Talvez essa até seja uma das razões para a grande quantidade de planos em 1ª pessoa do filme: a maior empatia entre diretor e protagonista. O fato de Hitchcock ter sido preso pelo próprio pai numa cela de cadeia quando criança adiciona mais um grau de empatia entre os dois. Outro ponto que aproxima o filme da experiência pessoal de Hitch é a iconografia religiosa, presente como poucas vezes na carreira do diretor, principalmente através de planos fechados de terços e ícones. Sendo um católico de natureza cética, o diretor parece se identificar com Manny, um cristão convicto que quase perde a fé após tantas desgraças mas que ainda quer acreditar. A própria decisão de Hitch de bancar o projeto, apesar da sua aparente falta de rentabilidade, também aproxima filme e diretor.

Assim, esse pode até não ser o filme mais sedutor, divertido ou cheio-de-suspense de Hitchcock, talvez nem parecendo um clássico filme de Hitch, mas é provavelmente o mais pessoal, reforçando seu status de autor, e de alguém que não deixava de colocar suas experiências pessoais na tela e usá-las para influenciar seu modo de expressão ou estética, por mais que seus filmes pudessem parecer obras de um diretor manipulativo mais preocupado com a diversão do público do que com qualquer outra coisa.
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10 de agosto de 2014

Medo e Delírio em Las Vegas (Terry Gilliam, 1998)


Tentar avaliar este filme com critérios tradicionais ou “quadrados” (como disse o bizarro especialista em narcóticos do filme) é perda de tempo, ou simplesmente um erro. Ele não tem compromisso com estruturas convencionais ou noções habituais de desenvolvimento dramático, plot ou “mensagem”. Ou com precisão histórica, já que mostra Grace Slick cantando “Somebody To Love” “em 1965” (!!!).

Seu compromisso é com a própria viaaaaaagem psicodélica de seus personagens principais, focados em sua jornada escapista sem passado ou futuro (poucos segundos de “Sgt. Peppers’ Lonely Hearts Club Band” já os fazem gargalhar: “entramos numa máquina do tempo!”), em busca de uma versão distorcida, hedonista e de cabeça pra baixo do American Dream. Uma jornada em que a estrada não tem destino final aparente e o que parece importar é a apreciar a vista e, principalmente, tentar se manter vivo. E, afinal de contas, que cidade melhor para materializar o sonho americano em toda a sua disfunção do que Las Veja, com seu consumismo desenfreado, suas luzes piscando, e seus cassinos sem janelas juntando todo o tipo de freaks, tudo isso no meio do deserto?

Em questão de transmitir o aspecto de uma viagem psicodélica através da estética, é difícil pedir muito mais do filme. É até difícil lembrar de muitas cenas em que os personagens principais estejam completamente sóbrios, ou seja, uma cena filmada de maneira sóbria. As cores são frequentemente estouradas ou destacadas por luzes fortes com filtros de cor, a velocidade dos movimentos parece diminuir ou aumentar conforme a droga que está sendo consumida no momento, os closes são frequentemente filmados com lentes que deformam os rostos ou os tornam estranhos, a câmera muitas vezes parece tonta ao flutuar para cá e para lá sem conseguir se fixar em canto algum, sons estranhos e músicas aparecem do nada, a direção de arte é extravagante e “over-the-top”, personagens são caracterizados com os traços caricaturais e exagerados dos filmes de Fellini, sem falar nas cenas realmente bizarras com morcegos voando (aliás, a visão do morcego morto na estrada prova o quanto o filme traz à tona o mundo particular dos personagens), o zoológico de répteis ou Del Toro se transformando num demônio com peitos. Mais importantemente que tudo isso, Johnny Depp e Benicio Del Toro estão ótimos, e são essenciais em tornar o filme uma experiência hilária, mas também assustadora, principalmente nas cenas em que o Dr. Gonzo pega sua faca e mostra uma faceta mais sombria trazida à tona pelas drogas.

Em meio a tudo isso, também é interessante tentar separar o que é viagem do que é real no personagem de Hunter. Afinal de contas, tudo aquilo é Hunter ou ele está simplesmente interpretando o personagem (ou alter-ego) Raoul Duke? Existe mesmo uma pessoa inteligente sob toda aquela loucura? O Hunter de verdade é o reflexivo que filosofa sobre a falta de rumo da geração hippie e seu completo insucesso em manter sua vida profissional em ordem ou o que sugere conseguir dinheiro ao fazer policiais nojentos sodomizarem a menina Lucy? No fim das contas, essa linha borrada entre delírio e sobriedade na caracterização do personagem marca a própria visão de Hunter sobre a realidade. Ou seja, a visão a partir do qual o filme é construído.

Mesmo com todos esses atributos, o filme não glorifica a cultura das drogas, mas também não a coloca sob um viés moralista. O que se sobressai é o desencantamento que veio junto com a decadência do ideal hippie e o começo dos anos 1970 e suas decepções. O “summer of love” tinha passado, deixando o país ainda às voltas com as “bad trips” reais que foram a Guerra do Vietnã e o governo Nixon. O que sobrou foi a oportunidade para cada um explorar suas viagens pessoais, no hedonismo que marcaram a década pós-Woodstock. E não falo exclusivamente dos personagens principais, ou dos hippies. Basta olhar para a menina Lucy com suas dúzias de quadros de Barbra Streisand, os policiais paranoicos (e violentíssimos) com os usuários de maconha, o fotógrafo sempre empolgado e obcecado com “cobertura total” e variações de lentes, ou o policial machão-porém-gay-enrustido. Sob os óculos amarelos e satíricos de Hunter Thompson, o que parece é que todos estão sob o efeito de seu próprio tipo de drogas, ou em sua própria viagem com sua própria visão distorcida da realidade – exatamente a mensagem de “White Rabbit”, do Jefferson Airplane, por trás de todas aquelas alusões e jogos de palavras com “Alice no País das Maravilhas”. A diferença é que umas viagens são mais perigosas – ou divertidas – que outras. 
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