11 de março de 2015

A História da Eternidade (Camilo Cavalcante, 2014)

Fui ver A História da Eternidade (Camilo Cavalcante, 2014) sem muitas expectativas, depois de ter ouvido alguns comentários bons e outros ruins sobre o filme, mas nada de mais. Quanto ao gênero, eu esperava um drama (na verdade eu esperava algo bem dramático), baseado no que vi no trailer. Ok. Sendo assim, me surpreendi quando comecei a ouvir algumas risadas nervosas e debochadas vindas de alguns cantos do cinema, causadas por alguma coisa banal que algum personagem disse de maneira bem séria. Pensei algo como “ah, não, peguei uma plateia besta na Fundaj de novo” nas primeiras vezes em que isto aconteceu, mas depois de um tempo eu comecei a tentar ver motivos no próprio filme pra essas risadas. Podiam ser as atuações, que às vezes pareciam um pouco caricatas demais, ou exageradas demais. Não sabia dizer com certeza.


Depois é que fui notar que realmente era difícil não rir quando um personagem de sotaque paulistano absolutamente caricato e falso, depois de tentar dizer o máximo de gírias paulistanas que é possível se dizer em dez segundos, exclama “o que é isso mesmo, vó?”, ao que ela responde “jerimum”, do jeito mais “vovozinha servil e amável” que se pode imaginar. Nesse momento é que eu fui entender o problema. Aquela era a risada da pessoa da cidade grande que vê a pessoa do interior (do Nordeste, pra ser mais específico) com uma lupa ou microscópio – mantendo uma distância segura sempre – e aponta pra ela rindo sempre que ela faz alguma coisa de “matuto” (ou seja lá qual for o apelido de sua preferência). O tipo de pensamento que gera esta risada característica está enraizada em uma cultura que, talvez numa tentativa de exprimir alguma espécie de cor local, frequentemente olha as pessoas do interior sob uma perspectiva de superioridade, retratando elas e seus hábitos culturais de uma forma que os diminui e os ridiculariza através da caricatura e da zombaria.

E esta abordagem do interior está profundamente presente em A História da Eternidade. Perceba como vários dos estereótipos mais comuns relacionados às pessoas do interior estão presentes no filme e distribuídos entre seus personagens: temos o patriarca-coronel machista que fala alto e grosso mas que é tão bruto que não consegue expressar emoções positivas ou ternas (Nataniel), a velhinha fervorosamente católica que vê toda expressão de sexualidade de sua parte como pecaminosa e passível de punição após a morte de seu marido (Dona das Dores), a adolescente angelical e inocente que anseia em ver o mar e por trás do jeito recatado esconde um desejo sexual proibido e incontrolável (Alfonsina), e por aí vai. Ah, e todos eles têm nomes incomuns e “feios”, claro. E gostam de um forrozinho. E vivem na seca.


Enquanto isso, os dois personagens vindos da cidade grande ou que tiveram algum contato duradouro com ela (João e Geraldo) apresentam um jeito mais “civilizado” e meio descolado ou artístico - como queira -, fazendo os interioranos parecerem menos civilizados e mais arcaicos e ignorantes em contraste, e geram nos habitantes da pequena cidade sentimentos libertadores e positivos, de certa forma. No entanto, ao fim eles acabam morrendo, como se fosse impossível para eles sobreviver naquele ambiente – quase – inóspito, que realmente não é seu lugar.

Camilo Cavalcante tenta pontuar essas relações com momentos de beleza sublime e edificante, nem que para isto ele tenha que imitar Rashomon (Akira Kurosawa, 1950), As Harmonias de Werckmeister (Béla Tarr, 2001) – diversas vezes -, Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2001) – não só pela narrativa que aborda as consequências do cerceamento da liberdade de expressão ou sexual do patriarcado, mas também pela própria figura do irmão bastardo, epiléptico e incestuoso, que eu achei que já tinha se esgotado com ele -, entre outros. Em alguns momentos, esses momentos conseguem realmente transmitir os sonhos e desejos dos personagens de forma poética e transmitir uma experiência quase transcendental dos personagens, em especial na “ida” de Alfonsina ao mar e na performance de João ao som de ‘Fala’, da Secos & Molhados. Em outros, o embelezamento me parece forçado e meio falso, como na cena em que Dona das Dores observa seu neto comer com uma iluminação que parece tentar ser mais barroca e dramática que um quadro de Caravaggio, ou no plano-sequência do final, com a chuva falsa que cessa – obviamente e bruscamente demais – depois do momento de maior drama e os gritos gravados na pós-produção em estúdio.


O que se mantém mais regularmente satisfatória é a trilha sonora de Zbiginiew Preisner – principalmente nas partes com sanfona -, apesar de ser usado um pouco demais. E o trabalho da maioria dos atores, que se mantém geralmente empenhados e com performances fortes – apesar do roteiro que não os deixa escapar dos vícios de “cor local” já citados -, especialmente Irandhir Santos.

Mas é difícil virar os olhos para os problemas de um filme cuja narrativa não só é movida e impulsionada pelas diferenças entre os personagens do interior e os da cidade, como parece reforçar ou manter estas diferenças fora das telas também, mesmo que sem absoluta intenção, afinal isto é discutível e eu não posso afirmar tal coisa com certeza. Mas não consigo não pensar que, enquanto algumas pessoas sairão do filme achando terem se divertido por terem visto algo belo e sublime e transcendental e etc, outras podem se lembrar do quanto se divertiram apontando o dedo para a tela e pensando/falando: “olha só, que engraçado, eles falam ‘carcará’ e ‘presepada’ e só comem jerimum e carne de sol!”; ou “tá vendo que esse pessoal do interior é estranho? eles transam com os parentes [e com bichos, afinal só faltou essa]!”. Ou talvez alguém se divirta por ambas as razões, e aí é que está o problema. 
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3 de março de 2015

Sniper Americano (Clint Eastwood, 2014)

Não é muito difícil supor o porquê de Clint Eastwood ter se encantado com a história de Chris Pyle a ponto de produzir este filme. Afinal de contas, Pyle se tornou um herói de guerra americano fazendo na vida real o que Clint fez durante grande parte de sua carreira no cinema: atirando e matando friamente os “selvagens”, caras maus, bandidos ou o que quer que seja que ousam levantar a mão contra a bandeira americana, sua moral e seus bons cidadãos. O porquê do diretor retratar esta história apresentando tão pouco senso crítico e tanta glorificação do herói de guerra é que é surpreendente e decepcionante.


O engraçado é que Clint acaba fazendo de Pyle um clichê de herói de guerra tão grande que ele praticamente nos ensina como fazer um herói de guerra. Primeiro é preciso iniciar o treinamento na infância, claro. Nesta fase, uma cultura armamentista nutrida ao longo de séculos e séculos faz um pai levar o filho até a floresta para matar um animal selvagem por puro prazer, como se esta fosse uma das lições mais importantes do mundo. Ok. Depois o pai ensina uma lição ainda mais valiosa: está tudo bem se você quiser agredir uma pessoa brutalmente, contanto que você tenha certeza que ela é um lobo (do mal) que está agredindo seus colegas/parceiros/irmãos, e contanto que você não seja o que mais apanha no fim das contas. Ok. Ah, não se pode esquecer de passar na Igreja e pegar (ou roubar) uma cópia de bolso da Bíblia, afinal não há como ser um bom texano sem ser temente a Deus.

Até aí já foi formada uma boa base para ser um grande matador, mas antes disso é preciso que Pyle se torne um homem. Ou melhor, um caubói - afinal ele é texano –, daqueles que gostam de montar em cavalos (mesmo que para que isso seja bem demonstrado sejam necessários efeitos especiais), ouvir música country (clichê terrível) e ostentar seus cinturões para poder comer mais mulheres, certo? Afinal de contas um caubói precisa de uma mulher, mas se ela o trair com outro caubói não tem problema, já que você nunca a amou (não me faça dizer que “um homem não chora”, Clint) e você conseguiu dar uma de macho alfa da casa e bater no cara que não tinha nada a ver com a história (pelo menos ele era um caubói que valorizava seu chapéu).

Mas temos aí um problema, já que um herói de guerra precisa ser também um homem de família. Problema resolvido assim que surge Kaya, uma mulher que não pode beber sozinha em um bar sem precisar ser resgatada das garras de aproveitadores pelo salvador Pyle, e é tão donzela indefesa que até passa mal depois de algumas doses, já que não tem bolas suficientes para ficar completamente sóbria e impassível como Pyle. Ok. Agora Pyle precisa conquistar Kaya, coisa que ele faz sem esforço mesmo com ela sabendo que é uma péssima ideia namorar um fuzileiro, já que ele é um macho alfa e as fêmeas não resistem a isso por muito tempo. Não sem algumas cenas com o uso clássico (porém completamente desnecessário) do bom e velho “pianinho” e de declarações de amor que soam falsas, claro. Enfim, sendo uma boa fêmea, Kaya rapidamente cumpre uma de suas principais funções (na verdade, uma de suas duas funções) dentro da família W.A.S.P. que forma com Pyle e dentro do filme: gerar filhos e filhas (mas primeiro um filho primogênito, claro). Sua outra função dentro do filme (já que nenhuma referência é feita a um possível emprego, pelo que me lembre) é reclamar incessantemente sobre a presença de Pyle no Iraque, nem que para isto ela tenha sua atuação reduzida a chorar em praticamente todas as cenas. No entanto, isto não a torna forte o suficiente para dizer qualquer coisa que seja quando Pyle diz que seu colega de exército morreu “por causa de uma carta”, ou “porque desistiu”. Ou para não abandonar suas intenções de se divorciar depois de ouvir um simples “venha cá” do marido. Ou de demorar mais do que (aparentemente) alguns meses para dizer que está orgulhosa dele e que ele é um ótimo pai (depois de passar o filme inteiro dizendo o contrário). Enfim.

Com a família protegida pela mãe em casa, Pyle pode agora ir para a guerra (não sem que antes a montagem sugira ridiculamente que o envolvimento – principalmente sexual – dele com Kaya comprometeu seu desempenho nos treinamentos, afinal é impossível que a mulher não prejudique o homem de alguma forma). Ah, sim, o treinamento. É bom notar que aqui Eastwood começa a esboçar algum tipo de crítica ao mostrar o quanto os métodos de treinamento ao estilo “testosterona máxima” e “this... is... Sparta!” acabam brutalizando e desumanizando os soldados. No entanto, o treinamento acaba passando brevemente, e as cenas de Nascido Para Matar (Stanley Kubrick, 1987) que vêm à cabeça assim que começam os gritos e xingamentos dos instrutores servem para torná-lo até brando e leve em comparação.


Ok, chegamos na guerra, onde aparentemente os soldados patriotas (em especial Pyle) acreditam que ao matar iraquianos e destruir suas cidades eles estão combatendo os terroristas e impedindo-os de atacar o solo americano outra vez. Ok. Desta forma, o americano que mata mais terroristas é condecorado como herói. Sendo assim, Pyle logo se torna uma “Lenda”, o que Clint reforça ao mostrá-lo cumprindo seu trabalho e salvando os indefesos soldados americanos dos terroristas iraquianos (a maior parte deles aparentando ser louca ou despreparada). Certo. Mas como todo herói precisa de um vilão, eis que aparece Mustafa, o sniper iraquiano (na verdade ele é sírio) que “ganhou medalha nas Olimpíadas” por suas habilidades como atirador, que ele usa para matar os tais soldados americanos. E é na caracterização de Mustafa que a narrativa fica mais fortemente maniqueísta. Enquanto Pyle larga sua função de sniper para corajosamente ajudar os soldados a invadir as casas dos iraquianos mais de perto (e assim protegê-los melhor, supostamente), Mustafa não só nunca deixa de ser um sniper como não se importa em matar americanos que estão de costas e/ou fora de combate (aqueles construindo o muro). Enquanto Pyle se mostra geralmente humilde e não alimenta muito as gozações/elogios quando lhe chamam de “Lenda” ou herói, Mustafa divulga vídeos dele mesmo matando soldados americanos. Como se isso não fosse o suficiente, uma música sombria digna de vilão de filme de super-herói toca em algumas das cenas em que Mustafa se prepara para sair à caça, e ele chega até a lamber os beiços (ou coisa parecida) após uma das mortes, como se tivesse um prazer (quase sexual) com aquilo. No caso, o perverso aqui me parece ser o diretor por se submeter a tal nível de maniqueísmo, e não o clichê de terrorista muçulmano maléfico. A coisa chega a seu ápice no momento em que Pyle finalmente mata Mustafa, quando Eastwood consegue reviver o “bullet time” (que eu achava que já tinha sido ultrapassado depois de ser usado em todos os filmes de ação desde Matrix) para dramatizar e intensificar o efeito da morte do sniper terrível matador de americanos como se esta fosse uma vitória gloriosa (é uma vitória para Pyle, com certeza, significando o cumprimento de sua missão no Iraque, mas reproduzir este pensamento desta forma é, no mínimo, irresponsável).

Não que eu ache absolutamente impossível elogiar o filme. Algumas das cenas de Pyle sendo levado a dilemas morais em sua função de sniper são realmente poderosas, em especial as que envolvem crianças como alvo, principalmente por causa da entrega do ator Bradley Cooper. Além delas, o momento em que Pyle retorna para casa depois de desistir da guerra me parece ser o ponto alto do filme, quando sua paranoia causada pela guerra é explorada com mais cuidado. Bons exemplos disso são a cena em que Pyle pensa estar sendo seguido por carros comuns nos Estados Unidos, quando se assusta ao ouvir o som máquinas inofensivas como um liquidificador (ou coisa parecida), ou quando ele encara uma televisão desligada e só consegue enxergar tiros e bombas (momento em que a crítica de Eastwood soa mais forte). No entanto, Eastwood explora esta paranoia só até certo ponto, já que, depois de uma única consulta no psicólogo, Pyle passa a conviver com veteranos de guerra e aparentemente se cura. É tanto que Pyle não vê problema nenhum em levar seu próprio filho para caçar, reproduzindo o sistema que ensina as crianças a matarem desde pequenas sem aparentar nenhum remorso ou trauma. E aparentemente o problema não era a culpa pelo assassinato de centenas de iraquianos, mas sim por não ter salvado mais americanos (através de mais mortes de “selvagens”, obviamente).

De qualquer forma, é difícil considerar que estes bons momentos esporádicos “salvam” o filme. Afinal de contas, estamos em 2015. Eu sinceramente gostaria que a esta altura do campeonato os americanos já tivessem superado sua mania de filmes de guerra recheados de terroristas muçulmanos perversos, de violência desnecessária e sem questionamento, de machões balançando sua testosterona pra lá e pra cá, de heróis de guerra sendo glorificados pela sua bravura, de um patriotismo cego, e assim por diante. No fim das contas, a mensagem parece ser que a guerra pode lhe matar e lhe deixar louco, mas mate centenas de terroristas selvagens nela e tudo ficará mais fácil. E você será um herói. E americanos amam heróis, como nós todos sabemos (e vemos no epílogo do filme, que chega a ser de uma grandiosidade vergonhosa). 
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