25 de setembro de 2014

Dead Man (Jim Jarmusch, 1995)


Justo quando eu achava que já tinha colocado Jim Jarmusch numa fôrma e sacado seu estilo, ele aparece com aquele que talvez seja seu filme mais excêntrico, e com certeza é o mais sombrio e político Se os seus quatro longas anteriores eram relativamente similares, podendo ser colocados como “comédias com tons sombrios”, o diretor inverte isto em Dead Man, um filme “sombrio com tons cômicos”.

Nele, o ingênio contador William Blake (Johnny Depp), de Cleveland, pega um trem para o Velho Oeste americano até a cidade de Machine atrás de uma vaga de emprego. No entanto, após ter a vaga recusada e matar o filho do “dono da cidade” quase sem querer (e ver ele matar seu possível interesse amoroso), ele é obrigado a se tornar um fora-da-lei e fugir, se embrenhando pelo Oeste na companhia de um índio chamado Nobody. Jarmusch transforma essa estória numa estranha mistura de road movie e western psicodélico com uma forte crítica ao homem branco americano e sua conduta essencialmente violenta – desde o despertar do país. Tudo isso em meio a uma jornada espiritual de um homem para encontrar sua morte, já que a jornada de Blake em direção ao extremo Oeste americano é também uma jornada em direção ao seu próprio fim.

No Velho Oeste retratado pelo diretor, qualquer tipo de harmonia, carinho ou humanidade nas relações entre as pessoas se perdeu. A sociedade branca retratada é doente, perversa, suja, e, acima de tudo, violenta. Isto fica evidente já nos primeiros minutos, quando a florista (e ex-prostituta) Thel responde à pergunta sobre o porquê dela manter uma arma debaixo do travesseiro com “porque esta é a América”. É uma resposta dotada de uma comicidade irônica e ácida, mas não há nada de cômico na forma como Jarmusch lida com a violência aqui. Os tiroteios e as mortes são recorrentes, mas o diretor nunca deixa de retratá-los de forma desajeitada, feia, seca, se recusando a esconder a violência mas também a estilizá-la ou embelezá-la como outros diretores (sim, estou falando de você, Tarantino).

Não é por acaso que, conforme William Blake vai sendo obrigado a matar mais pessoas para fugir, sua reação às mortes é cada vez mais fria e desligada, sim, mas ele parece ficar também cada vez mais abatido e consternado com isso. Além do mais, essa transformação de Blake nunca é colocada como algo positivo, pelo contrário. Jarmusch aproveita essa transformação e a reputação crescente de Blake como matador para ironizar o culto aos foras-da-lei e bad boys (por mais violentos que sejam) da sociedade americana. Por outro lado, o assassino profissional Cole Wilson, incapaz de mostrar remorso ao matar suas várias vítimas, só pode ser retratado de forma exagerada e quase caricata, amassando crânios com as botas e comendo carne humana no espeto.

Mas a violência presente no filme não é só de homem branco contra homem branco. Já no início do filme, Jarmusch faz questão de mostrar aldeias indígenas completamente destruídas, lembrando o genocídio dos nativos que possibilitou a ocupação do território americano pelos brancos e a formação do país. Até os búfalos são transformados em pontinhos num jogo de “tiro ao alvo”, com incentivo do governo – caça aos búfalos era estimulada para acabar com a subsistência e presença dos índios. E, quando Nobody vai à “loja de conveniência”, ele é atendido de forma grosseiríssima (outro tipo de violência), como se fosse um branco racista atendendo um negro numa cidade qualquer americana do século XX (ou XXI), assim como numa cena de Trem Mistério. E o vendedor ainda lhe oferece lençóis envenenados!

É justamente o contrário da postura do diretor, que se mostra imensamente respeitoso com a cultura indígena, fugindo dos clichês e abordando-a de maneira poética, e não simplista, ou como se olhasse de cima pra baixo. Esse respeito se mostra mais claramente na importância dada a Nobody, essencial na construção do personagem de Johnny Depp e quase tão importante para o filme quanto ele. Assim como Blake, Nobody é um outsider nato, daqueles tão amados por Jarmusch, não sendo aceito nem entre brancos e nem entre índios, dando a ele (e a Blake, que também destoa gritantemente dos brancos da região) a chance de olhar os dois grupos de fora. Mas a simpatia tanto de Nobody quanto de Jarmusch está claramente do lado dos nativos, e o índio é mostrado executando alguns dos rituais deles de forma respeitosa.

Desses, o que mais chama a atenção é o uso do peyote – planta com propriedades alucinógenas – para se conseguir “visões sagradas”, já que ele parece influenciar em certa medida a própria estética do filme com um pouco de psicodelia. A eventual aceitação da morte (anunciada) por parte de Blake também é um sinal de aproximação com a cultura e a espiritualidade indígenas, principalmente na cena em que Blake se deita no chão ao lado de um cervo morto, como que lamentando o fim do animal (e o seu próprio, por consequência). De certa forma, a própria decisão de não usar legendas durante as falas dos índios em sua língua nativa também é um sinal de respeito, já que valoriza a língua e os poucos que a entendem.

Jarmusch encadeia essa jornada espiritual de Blake num ritmo bastante particular, lento (hipnótico para alguns, chato para outros), pausado, que lembra filmes do cinema clássico japonês com suas cenas tratadas como unidades independentes e separadas por fades, ou, em algumas cenas específicas, o lado contemplativo do cinema de diretores como Andrei Tarkovsky e Béla Tarr.

Já a fotografia em preto e branco de Robby Müller complementa a visão dura de Jarmusch com uma paleta cinzenta, áspera, sem brilho. As composições usam de certo rebuscamento em alguns momentos, principalmente quando assumem o ponto de vista de Blake, mas são os movimentos lentos de câmera (quando ela se move, o que não é tão frequente assim) que marcam o ritmo do filme.


Mas é na trilha sonora de Neil Young que o filme como um todo acha seu melhor correspondente técnico. A música criada por Neil Young é minimalista, atmosférica, se apoiando mais em passar um estado de espírito (“mood”) através do improviso e da repetição de um tema do que em melodia ou harmonia. Ela também mostra um lado mais duro e sujo no alto nível de distorção da guitarra, que ecoa ao longe como uma versão sonora das paisagens desoladoras do filme. Além disso, a escolha da trilha “moderna” liga a narrativa à atualidade, deixando claro que a América retratada pode ser a do fim do século XIX, mas suas características violentas, racistas, espiritualmente pobres ou simplesmente más ainda estão presentes e profundamente enraizadas nos Estados Unidos na época em que o filme foi feito, e também no século XXI. 
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16 de setembro de 2014

Trem Mistério (Jim Jarmusch, 1989)




Ao longo da história do blues e da música folk (e mais tarde do R&B e do rock dos anos 50 e do blues rock, etc), o trem tem sido uma de suas figuras mais recorrentes. Não só como indicação de deslocamento mas também como sinal de escapatória e mudança, de jornada pessoal/espiritual, ou de nostalgia pela vida ou pelas pessoas que foram embora ou deixadas para trás. Neste filme, o também é figura recorrente e importante, como fica evidente no título, que referencia uma das canções mais famosas de Elvis Presley. Assim, o trem marca presença não só visualmente (seja levando os personagens, em segundo plano ou aparecendo sozinho), mas também através de seus sons característicos, pairando como uma presença quase fantasmagórica sobre a cidade de Memphis, no Tenessee, onde se passa a narrativa.

Como num trem e seus vagões, o filme é dividido em três blocos: no primeiro, um casal de jovens japoneses faz um tour por Memphis, buscando o espírito e a história da cidade que gerou gigantes do rock dos anos 1950 como Carl Perkins, Elvis Presley, Roy Orbinson e Johnny Cash; no segundo, uma viúva italiana e uma mulher recém que acabou de terminar com o marido dividem um quarto de hotel em meio a estórias sobre o fantasma de Elvis; no terceiro, dois colegas que acabaram de ser demitidos vagam bêbados pela noite de Memphis enquanto o cunhado de um deles é arrastado a contragosto.

Em todos os três blocos, os personagens são afetados por esse trem de uma forma ou de outra. Para o casal de japoneses, é uma forma não só de fazer um tour musical, mas também de se aventurar pela cultura americana de um jeito que uma viagem estéril e impessoal de avião nunca poderia proporcionar. Não é à toa que a personagem que mais destoa dos demais, a viúva italiana, só viaja de avião. Para Dee Dee (que acabou de se separar de seu marido, Johnny), é uma chance de recomeço longe do parceiro louco. Já para Johnny (interpretado por Joe Strummer, que mostra ser um ator mais do que aceitável) e seu cunhado Charlie, a situação se inverte: o trem leva para longe suas pessoas queridas, e apesar de passar perto, os deixa presos à situação complicada em que se encontram.

Outra figura importante da música americana essencial para o filme é Elvis Presley, o Rei do Rock em pessoa – ou “Elbissê”, como falam os japoneses. Afinal de contas, o filme se passa em Memphis, cidade natal do Rei, um lugar onde seu fantasma parece pairar por todos os cantos. Assim como com o trem, todos os personagens são afetados por Elvis de alguma maneira, seja ouvindo “Blue Moon” no rádio ou visitando sua antiga casa em Graceland. Mas as reverberações do Rei no filme vão além de um simples ar de “Elvis não morreu”. De certa forma, ele evoca com ele toda uma atmosfera dos anos 1950, evidente nas partes aparentemente esquecidas e velhas (mas cheias de história) da cidade por onde os personagens transitam. Essa atmosfera também se faz presente na tensão racial ainda existente na cidade, com bares e bairros só para negros e um hotel com funcionários negros mas que tem quadros de Elvis nos quartos porque é propriedade de um branco. Além disso, a música do Rei reforça o lado rebelde de Johnny (que ironicamente é chamado de Elvis, mesmo sem parecer com ele), e embala o amor do casal japonês – como já fez com inúmeros outros casais.

Todas essas evocações permeiam uma narrativa dividida em três blocos que tem suas ações ocorridas aproximadamente no mesmo período de tempo e com personagens, lugares e elementos que se cruzam e se completam (o Cadillac branco por onde o casal japonês passa sem perceber, por exemplo, só ganha destaque quando é visto por Johnny). Com isso, a intenção de Jarmusch é evitar um eventual ritmo de suspense e clímax que poderia surgir numa montagem intercalada. Não que não haja certa construção de expectativa e suspense no filme. Isso é inevitável, já que alguns fatos apresentados numa determinada parte só são esclarecidos na parte seguinte. Por mais que esses truques sejam atraentes, Jarmusch prefere dar a cada um dos blocos seu ritmo próprio, cadenciado, tão casual que parece até lento, para assim deixa-los respirar.

Essa narrativa multifacetada é protagonizada, mais uma vez, por personagens disfuncionais, deslocados, levemente melancólicos, hipsters, mas com um senso próprio de elegância (hipness, coolness, enfim). Porém, o fato deles não serem tão carismáticos quanto em outros filmes de Jarmusch podem fazer esta parecer uma obra menor do diretor. Seu maior trunfo está em explorar mitos da música americana (como Greil Marcus no livro homônimo), transpondo-os para um momento mais atual com destreza, afeto, e uma grande dose da costumeira nostalgia (expressa na fala da japonesa, que diz preferir a velha estação de Memphis pois ela possui “atmosfera”, ou do japonês que reclama que Yokohama é Memphis com 60% a mais de prédios... mas sem a mesma alma).


P.S.: é impossível terminar uma crítica a este filme sem antes citar o grande Screamin’ Jay Hawkins. Se antes ele aparecia como parte essencial da trilha sonora em Estranhos No Paraíso (1984), desta vez ele é um recepcionista de hotel com ares de bem-vivido e misterioso, e uma risada hilária. Mesmo não sendo ator, Hawkins rouba todas as cenas em que aparece com seu traje “elegante” vermelho e preto e sua voz grave e pausada. Ele voltaria a colaborar com Jarmusch em Uma Noite Sobre A Terra (1991), como parte da trilha sonora. 
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