8 de maio de 2014

E Deus Criou A Mulher (Roger Vadim, 1956)


A fascinação da câmera do diretor Roger Vadim pela beleza do corpo de sua jovem mulher é evidente e decididamente fetichista em vários momentos, como se ele tivesse prazer em filmá-la ou quisesse mostrá-la como uma criação divina de fato (em alusão ao título), mas a Juliette de Brigitte Bardot supera os fetichismos fragmentados e essencialmente recatados (pelo menos se vistos pela ótica atual) de sua época, mostrando-se praticamente de corpo inteira e reclamando a posse desse corpo para si.

Nua como Eva desde os primeiros planos do filme, ela ajuda a criar uma nova forma de se ver e pensar a sexualidade feminina, com uma personagem que deixa de lado o sentimento de repressão e culpa em relação ao sexo que tem sido historicamente imposto às mulheres para abraçar sua sexualidade e sua liberdade de se expressar com seu próprio corpo. Mesmo assim, há que se fazer justiça mencionando que Vadim se mostra definitivamente mais conservador que Ingmar Berman em “Monika E O Desejo” (1953). Essa sim era uma mulher realmente ousada e incontrolável.

Se recusando a servir como um mero objeto de desejo passivo, Juliette chega a brigar pela atenção de três homens, sem nunca se deixar parecer vítima ou controlada. Juliette é uma sedutora, sem dúvidas, mas isso não é mostrado como uma característica maligna ou corrompedora – tanto dela mesma quanto dos outros. As femme fatales também usavam sua sexualidade com desenvoltura e seduziam os homens, sim, mas essa sedução acaba fazendo-as serem punidas no final, ou corrompendo os heróis que caíam em seus encantos. Não é isso que acontece aqui.

Obviamente Juliette é tratada como uma depravada, louca, vadia e por aí vai (ainda que o filme nunca adquira um tom realmente pesado ou as difamações nunca cheguem a ser graves), mas o que se pode ver é uma moça impetuosa, romântica, imatura e fogosa (sim! e sem vergonha de admitir isso). E convincente, graças à performance graciosa de Brigitte Bardot. A cena da dança no bar é a prova cabal disso, principalmente em sua reação após levar um tapa: triste, assustada, mas segura de si.

A decisão de Juliette de voltar para o marido parece mal explicada e desenvolvida, especialmente depois dele corroborar (ao menos em parte) com o discurso machista e retrógrado de que ela precisava de um corretivo, mas faz certo sentido. Sim, ela demonstrava ter anseios de liberdade que não pareciam condizer com a vida regrada do marido, mas ele foi o único que soube tratá-la com amor e respeito, afinal. E por mais que o final pareça desajeitado e corrobore em parte com a noção de que a mulher só pode ter uma existência plena e feliz por meio da união matrimonial, ele não parece tão sem pé nem cabeça quanto o de Alta Sociedade (Charles Walters, 1956), por exemplo.

Bardot à parte, não se pode negar que a montagem do som é desajeitada, que a trilha sonora é dispensável e que as várias tentativas de usar toda a amplitude do Cinemascope nas composições com alta profundidade de campo são irregulares, e dificilmente exploram bem esse recurso. Além disso, alguns finais de cena (especialmente a cena final) parecem bem abruptos e insatisfatórios, quase displicentes.

Esse olhar fetichista de Vadim se revela mais frequentemente em escolhas de figurino (ou a falta dele) de natureza bastante sugestiva do que propriamente em planos fechados ou closes. Mesmo vestida, Bardot parece muitas vezes estar se revelando por inteiro, de tão hipnótica que é sua aparição. E de certa forma, a câmera que foca apenas em suas pernas na cena de dança do bar (única vez em que a câmera foca em alguma parte do corpo específica que não seja o rosto) retrata bem o desejo que ela provoca ao longo do filme. No fim das contas, o olhar que mais importa no filme é o da própria Juliette/Bardot, que mistura desejo e firmeza de mulher com inocência e humor de menina. 
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