24 de novembro de 2014

Interstellar (Christopher Nolan, 2014)

Se Christopher Nolan pode fazer referência à parábola de Lázaro para ilustrar sua história, permita-me então dizer que o diretor mais parece encarnar o personagem Ícaro em seu novo filme. Ok, ele abusa menos dos clímaces superdilatados de meia hora com a ação dividida em diversas localidades do que em outros filmes, mas ele nunca tinha feito um filme tão longo, com tantas estrelas, tantos efeitos especiais, numa escala tão grande ou com tantos detalhezinhos e problemas para o protagonista. Para não sair do campo das mitologias, a jornada do piloto/fazendeiro Coop pode ser comparada também à de Ulisses na Odisseia, que, assim como todos os outros protagonistas dos últimos filmes de Nolan, enfrentam mil tormentos para reestabelecer o contato com suas famílias e retornar a uma ideia de lar ou casa que já se perdeu. Enfim, nada muito diferente de tantas e tantas jornadas de heróis ao longos dos séculos.


Mas não é pela falta de originalidade que Nolan parece Ícaro, e sim pela megalomania, pelos excessos, pela artificialidade e superficialidade. Mais uma vez, Nolan (e seu irmão) enchem o roteiro de informações desnecessárias e conflitos que vêm a ser resolvidos ou contornados até com certa facilidade, o que faz eles parecerem até evitáveis, principalmente quando levam o filme a tropeçar em seus próprios critérios de verossimilhança. Isso revela um diálogo verborrágico, excessivamente preocupado em criar um turbilhão de informações num esquema que mais parece um quebra-cabeça que dá ao espectador uma sensação “overwhelming”, de confusão, que pode acabar sendo confundida com complexidade, profundidade ou “viagem”. Como consequência, os diálogos frequentemente parecem carregados, mecânicos, desprovidos de senso de improviso ou informalidade, e com personagens que parecem se expor demais, tentando colocar para fora seus sentimentos e ideias mas parecendo estarem mais elaborando em cima dos “temas” do filme. Que são muitos, diga-se de passagem, passando desde a falta de cuidado dos seres humanos com os recursos naturais da Terra até corrida espacial, relação entre pais e filhos, teoria da relatividade, conflito entre razão e emoção, possibilidade de vida inteligente em outros planetas e desespero diante do apocalipse, só para citar alguns. Porém, como já foi citado, o estilo verborrágico e excessivo do roteiro acaba tornando a abordagem desses temas, em sua maioria, superficial, com uma história que parece querer abarcar coisas demais.

O roteiro megalomaníaco também acaba prejudicando vários personagens, que parecem mal construídos ao não mostrarem coerência própria ou motivações convincentes. É o caso da Dra. Brand, uma das personagens mais importantes da história, que tem um caso de amor mal resolvido com o tal Dr. Edmunds. A relação de amor dos dois é mencionada várias vezes, mas sempre com pressa, sem nunca chegar a convencer. Brand até o usa como justifica para um discurso bastante piegas e que soa totalmente fora de lugar sobre o poder do amor, mas isso não muda muita coisa. Outro personagem mal construído é o filho de Cooper, Tom, principalmente em sua fase adulta, quando é interpretado por Casey Affleck. Sua passagem de filho fiel e dedicado a filho convencido a esquecer o pai é rápida demais para ser convincente, apesar de gradual, e sua agressividade em relação à irmã carece de motivação ou justificativa suficiente – a morte de um seus filhos é mencionada, mas como algo jogado e mal explorado -, parecendo servir mais como auxílio na construção do clímax do que qualquer outra coisa. Ao final, sua morte nem é mencionada. O cientista interpretado por Matt Damon, Dr. Mann, também parece carecer de evidências ou motivações que esclareçam suas ações, de tal modo que até o competente Matt Damon parece perdido, parecendo são demais para ser louco e desnorteado demais para alguém tão racional, por assim dizer. Já o primeiro astronauta a morrer, Doyle, é tratado com tão pouca importância que nem lembramos mais seu nome em cinco minutos após sua morte, que acontece numa cena confusa que é concluída com um plano quase desrespeitoso de tão frio.


Mesmo mal construídos, todos (ou quase todos) esses personagens contribuem, em níveis diferentes, para a construção dos momentos e cenas de melodrama do filme, que marcam a narrativa mais do que em qualquer outro filme de Nolan. O diretor explora incansavelmente as idas e vindas da relação entre Cooper e sua filha, Murph, explorando a carga dramática da separação dos dois e não se contendo em transformar o filme em uma jornada do pai em busca de salvar e rever a filha. Hans Zimmer pontua os momentos mais críticos e emotivos dos dois com uma trilha sonora típica de melodrama, sentimental, apelativa, cheia daquele pianinho ao melhor estilo “chore mais”. Ao seguir esse caminho (mais fácil), Nolan acaba até tirando parte do foco nas atuações de seus próprios atores. Até porque Jessica Chastain e Matthew McConaughey estão (e são) ótimos, e não precisam desse tipo de coisa (ou pelo menos não tanto assim) para cativar o público.

O melodrama pode ser novidade, mas a elaboração de sequências climáticas com dezenas de minutos de duração ancoradas em montagem paralela não podia ficar de fora, seguindo firme e forte. No entanto, apesar das cenas de clímax parecerem menos megalomaníacas em Insterstellar, por pelo menos durar menos e intercalar menos espaços do que em filmes como A Origem (2010) e The Dark Knight Rises (2012), isto não as torna melhor executadas. Para funcionar bem, este esquema precisa de ações em espaços diferentes mas em níveis de ritmos similares, mas não é o que ocorre aqui. Enquanto Cooper tenta aprender a manipular a gravidade no espaço gerado dentro do buraco negro por “eles”, Murph quebra a cabeça para entender como captar os sinais do pai para entender a mesma gravidade em seu quarto. Até aí tudo bem, mas enquanto as seções de Cooper geram fascínio e tensão quase naturalmente pelo caráter inusitado (ou espetacular) do cenário e pela boa interpretação de McDonaughey, a tensão das partes de Murph é gerada pela possibilidade do irmão voltar logo para casa e cometer alguma violência contra ela. No entanto, como já foi colocado, essa possibilidade é mal construída, e acaba se desconcretizando de forma embaraçosa. Sem falar que a quantidade de ações propriamente ditas que os dois realizam é bastante diferente, já que Murph, na grande maioria da cena, apenas... quebra a cabeça, ou seja, pensa, quase parada.


Outra coisa que Nolan não podia passar sem são as comparações com outros filmes (melhores) sobre viagem espacial, em especial 2001: Uma Odisseia No Espaço (Stanley Kubrick, 1968) e Solaris (Andrei Tarkovsky, 1972), pela enorme influência dos dois sobre qualquer filme que trabalhe com astronautas viajando pelo espaço e com planos da Terra, da Via Láctea e de espaçonaves. As referências a 2001 ficam particularmente claras quando a espaçonave entra no buraco de minhoca, lembrando a lendária cena da travessia do portal da última parte do filme de Kubrick, ou todas as – poucas – vezes em que Nolan utiliza uma valsa ou trilha sonora mais clássica para mostrar a nave e os planetas de forma mais fria e contemplativa. Quanto a Solaris, as referências aparecem na noção de que existe um lugar do espaço em que se pode comunicar com uma pessoa que se ama muito mas que está muito além do alcance físico de um ser humano (o espaço multi-dimensional dentro do buraco negro e o oceano do planeta Solaris) e no planeta cercado por um oceano sem fim, por exemplo.

No entanto, por mais que as referências visuais ou até sonoras sejam frequentes, a abordagem de temas entre Nolan e os dois diretores citados é bastante diferente. Enquanto Kubrick preferiu manter o mistério em relação à existência de vida inteligente fora da Terra, Nolan resolve a questão de forma simplista e quase sentimental - na cena em que Cooper se torna um dos seres superiores por uns instantes para tocar a mão da Dra. Brand -, mas seguindo esquema semelhante ao de 2001, com a raça superior concedendo a um humano o direito de também ascender a um nível superior depois de passar por um portal dimensional, por assim dizer. A ironia e crítica de Kubrick ao mostrar os conflitos e perigos na relação entre homem e máquina e os excessos no uso da tecnologia também somem, com as máquinas sendo usadas como “melhores amigos do homem” e motivadores de piadas. Claro, a paranoia sobre isso era bem maior nos anos 1960, mas não deixa de ser lamentável que o tema seja deixado de lado em favor da jornada do pai-herói, só aparecendo na cena em que o Dr. Mann imita a clássica cena “open the Pod bay doors, HAL”, de 2001. A diferença é maior ainda em relação a Tarkovsky, já que, por mais que os deem sinais de usarem a ficção científica como plataforma para tratar de dramas humanos, a fascinação de Nolan pelo gênero é bem mais evidente, como fica claro na forma como os dois observam os próprios planetas e estrelas, com Tarkovsky vendo-os com um olhar de admiração, mistério e que remete à Terra ou sugere uma saudade dela, enquanto Nolan os vê sem se demorar muito em planos contemplativos, de forma mais analítica, calculista, como peças em um quebra-cabeça. Além disso, por mais que, como foi citado, o “fantasma” de Cooper lembre os “fantasmas” da esposa falecida de Kelvin em certo nível, Nolan usa o recurso para valorizar o “poder do amor” e as possibilidades de inteligência superior dos humanos, deixando claro o papel da ciência naquilo tudo e como ela pode salvar a Terra. Já Tarkovsky usa isso como base para explorar o interior de Kelvin, com todos os seus traumas, conflitos éticos e incursões do subconsciente, e sempre mantendo uma dose de misticismo e do sobrenatural – ou seja, rejeitando a ciência.


Estando Interstellar no campo das “ficções científicas populistas”, talvez seja mais justa uma comparação com o mestre do gênero, Steven Spielberg. E mesmo essa comparação desfavorece Nolan, já que os filmes de Spielberg nesse estilo mantinham sempre em seu olhar um senso de deslumbre e inocência, como o de uma criança descobrindo um brinquedo novo, o que era até admirável, e até explica a preferência de Spielberg por não fazer de seus filmes quebra-cabeças e manter neles alguns mistérios e pontas soltas. O que é o contrário do que acontece com Nolan, que insiste em oferece a seus espectadores filmes mastigados e calculistas sob uma ilusão de realismo, sem espaço para ambiguidade.

No fim das contas, talvez Nolan "peque" mais pelo excesso de manipulação do que por qualquer outra coisa. O diretor parece querer colocar o espectador numa montanha russa daquelas mais caras do parque da Disney, cheias de curvas e reviravoltas, com efeitos de luz e som espetaculares e coisas pulando na sua direção de tempos em tempos. Mas nem todos gostam de montanhas russas, eu suponho, principalmente quando já se sabe de cor o percurso delas. Talvez Nolan devesse seguir o exemplo de seus personagens e explorar novos ares, novos mundos, talvez um em que o tempo siga seu curso mais devagar. Mesmo seus defensores poderiam agradecer (algum dia), já que mesmo os maiores fãs de montanhas russas sabem que as mais significativas ou melhores viagens que alguém pode fazer são as interiores (ou seja, que se passam dentro da cabeça de cada um), e não as exteriores em si (que indicam deslocamento espacial). 
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20 de novembro de 2014

Boyhood (Richard Linklater, 2014)


“Querido diário, hoje o céu tava bem ensolarado e cheio de nuvens bonitas, “Yellow” do Coldplay tava tocando na rádio, e eu aprendi como nascem as vespas”. Assim poderia ser Boyhood, se seu personagem principal, o menino Mason, pudesse expressar seus sentimentos através de narrações em off. Ou se ele escrevesse dessa maneira tosca que se forma quando um adulto tenta – pessimamente - escrever como criança. Mesmo sem nenhuma narração em off e nem sequer uma menção à palavra “diário”, Boyhood às vezes dá a impressão de que estamos lendo o diário de Mason dos 5 aos 17 anos. Ou vendo um álbum de família com suas fotos. Ou, mais precisamente, vendo pedaços de seu amadurecimento através dos olhos de um observador que se mantém sempre próximo e afetuoso.

Afinal de contas, o filme não é feito de impressões pessoais de Mason ou segue estritamente sua perspectiva, já que, por mais que seja centrado nele, Boyhood também traz cenas centradas das quais Mason não participa diretamente, principalmente envolvendo sua mãe, seu pai e sua irmã. O que é compreensível, já que a estória de cada um de nós passa também por como afetamos e somos afetados pelas pessoas mais próximas a nós.

Na prática, Linklater constrói a história do amadurecimento de Mason através de fragmentos, pedaços de vida. Entre esses fragmentos se misturam uma série de alegrias, decepções, relações afetivas e ritos de passagem e aprendizado que, reunidos, formam o processo de amadurecimento do garoto. Ok, isso já era de se esperar, mas a escolha desses ritos de passagem a serem colocados na tela é bastante interessante. Os ritos mais óbvios como formatura e primeira namorada são incluídos, claro, mas outros tão clichês quanto como o primeiro beijo e a primeira transa são deixados de lado, enquanto algumas memórias aleatórias que parecem só permanecer na cabeça de uma criança ganham importância, como quando Mason reclama que o pai esqueceu de guardar seu carro para quando ele completasse 16 anos. Linklater sabe que o que realmente molda a personalidade de uma pessoa está não só nos grandes e memoráveis momentos, mas também nas pequenas coisas que às vezes você acaba esquecendo, como aquele desenho que você assistia quando tinha sete anos, ou aquela sua paixão de infância que acabou meio esquecido (grafite e Harry Potter, no caso de Mason).

Nesse sentido, as várias músicas que fazem parte da trilha sonora do filme acabam funcionando também como uma linhagem própria de ritos de passagem, de certa forma, demarcando os diferentes momentos do filme como “a época em que música tal tocava na rádio” ou “a época em que Mason gostava da banda tal”. Sem falar no modo como a música é vista como uma importante forma de ligação e troca de afeto entre as pessoas, em especial nas cenas em que o pai de Mason lhe apresenta uma música country e lhe dá o “Álbum Negro dos Beatles”. A relação de Mason com os videogames também acaba servindo para demarcar a mudança de tempo, considerando o modo como o menino vai trocando de consoles ao longo do filme. Além disso, a narrativa mostra, de maneira simples e bastante “justa”, o modo como os games acabam servindo para Mason como uma forma de estabilizar ou descarregar suas emoções, em especial na cena em que ele é mostrado jogando um jogo de boxe com um colega logo após a mãe terminar com o padrasto de maneira traumática.

A presença tão frequente dessas “pequenas coisas” também acaba reforçando o quanto essa construção baseada em fragmentos e pedaços permite ao roteiro ser bastante solto, não tendo que seguir uma linha reta em direção a um objetivo. Ninguém discorda que Boyhood é uma história sobre amadurecimento, perda de inocência, relações familiares, a passagem do tempo e as coisas que se ganham e se perdem com ela e bla bla bla, mas Linklater nunca parece querer forçar uma mensagem ou ponto específico, preferindo apenas observar, numa perspectiva em que mesmo os personagens secundários que poderiam ser facilmente ridicularizados (como os avós postiços de Mason que fazem o estilo WASP) parecem ser tratados com atenção, respeito, e às vezes até carinho, ganhando espaço e tempo consideráveis na tela.

O diretor não cai nas duas abordagens mais comuns de filmes com crianças ou adolescentes, não ficando nem naquela coisa crua e realista de “oh, como essa criança sofre, que drama, meu deus, ainda bem que ela consegue ser criança apesar de tudo” e nem com uma visão idealizada do “mundo infantil e sonhador da criança com imaginação fértil”. Outro diretor poderia explorar mais longamente ou enfaticamente as partes dramáticas, por exemplo, mas o filme é visto - até certo ponto - pela perspectiva de Mason. Se as crianças e adolescentes já têm tendência a se fechar em seu próprio mundo quando se veem ameaçadas ou amedrontadas, isto é ainda mais forte – e fica evidente no filme – em Mason, um garoto introspectivo e quieto.

Um bom exemplo dessa abordagem está presente na cena em que Mason encara a primeira mudança, aos cinco anos, e fica sem tempo de ligar pra um dos seus amigos – o que mais tinha aparecido no filme até aquele momento – antes da mudança. Na hora da partida do carro, o menino acompanha Mason numa bicicleta, acenando. Mason se limita a encarar a janela, mal esboçando reação. Ele até parece meio perdido, triste, mas internaliza tudo. Outro diretor poderia colocar uma música para realçar a emoção da cena ao fundo, ou então orientar o ator a expressar mais tristeza em seu rosto. Não neste filme. A cena não tem trilha sonora, e passa logo. Corte. Mason já tem seis anos. Ecos da cena em que a personagem principal de Um Alguém Apaixonado (Abbas Kiarostami, 2012) parece reencontrar sua vó, num momento emocionalmente fortíssimo para ela, mas se mantém calada – e a câmera afastada, como que em respeito.

Esse tipo de cena também realça o quanto o diretor se preocupa em manter um aspecto de “vida real” no filme, seja em seu tom informal ou em sua estética simples, minimalista, despretensiosa, que mantém um tom meio realista mas sem ser dura ou crua. Esses sopros de “vida real” ficam evidentes quando Linklater resolve dedicar tempo a figuras excêntricas encontradas na rua, como o professor louco que fala sozinho no bar ou a dupla de músicos tocando na calçada em plena madrugada. Esse tipo de cena dá ao filme um sopro de espontaneidade, e o aproxima de um cinema que preza por colocar seus personagens fora da artificialidade dos estúdios, mandando-os para as ruas, os exteriores, enfim. É evidente que o diretor quis buscar esse tipo de estética quando fez com que os atores usassem suas próprias roupas no filme. Mesmo que isso não fique claro para a plateia, acaba alterando a forma como esses atores se preparam e lidam com seus personagens.

E o que poderia dar mais sensação de “vida real” que acompanhar o amadurecimento dos atores ao longo de 12 anos inteiros? Ao fazer isso, Linklater nos dá a chance de presenciar as evidências passagem do tempo no corpo e mente de uma pessoa de uma forma preciosa, que é rara no cinema. Ao vermos Mason – mais do que os outros, considerando que ele é o personagem principal – crescer, podemos reparar nos seus diferentes penteados, aparecimento de brincos, crescimento de espinhas, entre outras coisas - imagino que essa seja uma das razões das pessoas para assistirem séries, mas não saberia dizer com certeza. Nesse sentido, a escolha de uma criança/menino como personagem a ser acompanhado é perfeita, já que a segunda infância e a adolescência são provavelmente as fases de mais transformações – tanto físicas quanto psicológicas – na vida de uma pessoa. Na prática, esse acompanhamento também permite estabelecer uma relação de empatia e proximidade com os personagens que é totalmente diferente – e mais especial – que a que normalmente se tem. De certa forma, é uma relação próxima à que se tem com o casal da trilogia Antes Do Amanhecer (1995), Antes Do Pôr-do-Sol (2004) e Antes da Meia-Noite (2013), com a diferença que as mudanças em Boyhood vão acontecendo aos poucos e são menos evidentes – por razões óbvias, já que os filmes da trilogia foram filmados de nove em nove anos. De fato, as divagações filosóficas de Mason quando atinge os 16 e começa a falar sobre os problemas de comunicabilidade entre as pessoas, os males do mundo capitalista e o enorme peso das expectativas impostas a homens e mulheres pela sociedade até lembram os diálogos do casal em Antes do Amanhecer, quando ainda eram jovens e sonhadores.


Não que o filme seja absolutamente desprovido de problemas, ou de pequenos detalhes que possam incomodar. A cena do término de Mason com sua namorada da adolescência, por exemplo, parece um pouco apressada ou mal resolvida em seu início, com um ou dois minutos se passando até que a situação dos dois fique realmente clara. A transformação do segundo padrasto de Mason entre cara legal e bêbado imbecil também parece meio estranha, menos por repetir a transformação do primeiro padrasto – o que não é em si um problema – e mais por parecer súbita demais. Já a cena em que o “latino” que foi de assistente de pedreiro a gerente de restaurante agradece à mãe de Mason pelo conselho parece meio forçada, apesar de ser válida por dar a um personagem de pouco importância a chance de também se transformar e amadurecer com o passar dos anos.

No entanto, não deixa de ser impressionante o fato de Linklater manter o filme tão coerente, tanto em estética quanto em abordagem e temática, ao longo de todos esses 12 anos, e sem apelar para manipulações emocionais nem forçar reações ou pontos de vista. E tudo isso ainda se permitindo dar chance a alguns planos-detalhe mais virtuosísticos que acabam fugindo do padrão minimalista que o próprio diretor estabelece, como um belíssimo plano fechado do último fio de cabelo de Mason reluzindo próximo a seu olho antes de ser cortado, um ou dois planos-sequência em que os personagens são seguidos pela casa, ou a tomada da fogueira sendo mijada pelo menino.

Os próprios atores também chamam a atenção por coesão semelhante, considerando que eles só se encontravam alguns dias no ano para gravar as cenas. Nesse sentido, Ellar Coltrane surpreende pela maturidade como ator – mesmo percebendo que há horas em que fica difícil separar a vida de Mason com a vida do ator -, e o mesmo se aplica, em menor grau devido até à sua participação, a Lorelei Linklater, que interpreta Samantha. Patricia Arquette como a mãe e Ethan Hawke como o pai também merecem elogios por atuações de grande entrega e absolutamente convincentes e cheias de nuances.


Planos e atuações à parte, a principal qualidade do filme é dar ao público um personagem pelo qual ele pode sentir empatia, afeição, e, principalmente, uma sensação de reconhecimento, como se pudéssemos ver as cenas do filme e ao mesmo tempo lembrar memórias de nossas próprias vidas, pensando “é, foi mais ou menos assim mesmo que aconteceu comigo”. Há dúzias de situações presentes no filme que cheguei a vivenciar de forma semelhante, mas não me cabe lista-las aqui. Apenas posso dizer que me sinto grato de ter relembrado minhas memórias da infância e da adolescência de forma tão bonita e num filme tão belo, e grato de ter criado, nem que apenas pelas quase três horas de duração do longa, uma relação de tamanha cumplicidade e até afeto pelos personagens de um filme - que depois de um tempo parecem até amigos de infância. 
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10 de novembro de 2014

Paris, Texas (Wim Wenders, 1984) e o blues


Em sua época, Paris, Texas (1984) foi o filme que Wim Wenders sempre quis fazer. E não só por unir os principais temas presentes no cinema do diretor até aquele momento: errância, solidão, viagens por estradas sem fim e laços afetivos entre pessoas separadas de suas famílias, entre outros. Antes dele, o diretor alemão já tinha filmados outros dois longas nos Estados Unidos que tinham como seu tema principal (ou um dos temas principais) a própria América, Hammett (1982) e O Estado Das Coisas (1982), mas só ficou plenamente satisfeito com a empreitada em Paris, Texas. Isto porque, no filme, Wenders conseguiu, mais do que nunca, realizar – e transpor para a tela – uma viagem ao coração dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que escrevia uma carta de amor ao país cujos mitos e cultura sempre foram objeto de fascínio do diretor.

Além da América, as outras paixões de Wenders eram, desde a adolescência, o cinema e o rock ‘n’ roll, a ponto do alemão ter afirmado em entrevista que “sempre foram um só, meu amor pelo rock e meu amor pelo cinema... sempre estiveram ligados”. A ligação chegou a tal ponto que o diretor realizou um curta (Alabama: 2000 Light Years from Home, 1969) sobre a diferença entre as versões de Bob Dylan e Jimi Hendrix de “All Along The Watchtower”, e um longa (Summer In The City, 1970) sobre como um homem se relaciona com músicas da banda inglesa The Kinks. Como o próprio Wenders disse, “o rock sempre foi tema/sujeito [ele usa a palavra sujet, do francês] dos meus filmes”.

Com o tempo, a obsessão do alemão pelo rock foi levando-o para épocas cada vez mais distantes, e, como todos que pesquisam o rock por tempo suficiente, Wenders descobriu que as origens do rock estão, principalmente, no blues, gênero musical nascido nas comunidades afro-americanas do sul dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX, e acabou sendo de influência essencial não só para o rock como para o jazz, funk, R&B e soul, entre outros gêneros. Esta paixão de Wenders pelo blues está mais clara do que nunca em Paris, Texas, que é, também, um filme sobre (e apaixonado pelo) blues.


Isto porque pode-se dizer que o personagem principal de Paris, Texas, Travis, “has got the blues” (está triste ou depressivo), como diz a expressão. Afinal de contas, Travis, um homem arrasado e determinado a vagar sem rumo pelas estradas e desertos depois de se separar dolorosamente da mulher e do filho, é um tipo de personagem recorrente no blues, aparecendo em vários clássicos como “Going Down The Road Feeling Bad”, “Key To The Highway”, “Ramblin’ On My Mind” e “Walking Blues”.

Para expressar esses sentimentos através de sons, o músico de escolha de Wim Wenders foi Ry Cooder, guitarrista/violonista especializado em músicas de raiz dos Estados Unidos (e de outros países e continentes), principalmente o blues. O diretor queria colaborar com Cooder desde os anos 70 – mais tarde, eles também fariam Buena Vista Social Club (1999) juntos -, quando o músico saiu em carreira solo e passou a ganhar notoriedade pela sua maestria no uso da slide guitar (método de tocar violão ou guitarra tradicional no blues desde a década de 1920, em que se usa um pequeno tubo geralmente feito de vidro ou metal para deslizar sobre as cordas, variando a vibração e tom das notas). Olhando para trás, Wenders parecia querer trabalhar com Cooder desde No Decurso Do Tempo (1976), longa dotado de uma trilha sonora de blues rock fortemente marcada pelo uso da slide.

Para a criação da trilha de Paris, Texas, Wenders escolheu como base uma canção gravada em 1928 pelo cantor e violonista de blues e spirituals (gênero de música folk que deu origem à música gospel) Blind Willie Johnson – um texano, diga-se de passagem -, “Dark Was The Night, Cold Was The Ground”. Marcada por sua expressão transcendental de sofrimento e dor e pelo seu uso eloquente da slide guitar, a canção já tinha sido interpretada por Cooder em seu álbum de estreia, Ry Cooder (1970). A trilha é quase que inteiramente formada por variações de “Dark Was The Night”, com exceção das cenas do bar de beira de estrada no início do filme e do vídeo de Super 8, em que aparece uma versão instrumental de “Canción Mixteca” (no álbum da trilha a canção aparece em versão cantada, com vocais de apoio do próprio ator Harry Dean Stanton), música folk mexicana composta na década de 1910. Apesar da distância geográfica entre as duas canções, a letra de “Canción Mixteca” mostra uma saudade profunda de casa que poderia se encaixar muito bem no blues: “Qué lejos estoy del suelo donde he nacido/inmensa nostalgia invade mi pensamiento/y al verme tan solo y triste cual hoja al viento,/quisiera llorar, quisiera morir de sentimiento".


A música de Cooder para o filme é etérea, atmosférica, com notas que parecem pairar no ar como poeira no deserto, como nas trilhas compostas por Ennio Morricone para os westerns de Sergio Leone. Se no começo do longa tem um personagem principal que decide não se comunicar através de palavras (assim como o próprio Blind Willie Johnson em sua gravação de “Dark Was The Night”, onde ele se limita a alguns gemidos e vocalizações), fica a cargo da expressão lacônica do rosto de Harry Dean Stanton e da música de Cooder para transmitir a dor, a solidão e a tristeza de Travis.

Quando volta para casa, Travis busca reparar os danos causados pelo desentendimento de quatro anos antes e reestabelecer os laços familiares com as duas pessoas que ele mais ama: o filho, Hunter e a mulher, Jane. É aí que o personagem se revela mais do que nunca como personagem de blues. Quando afirmo isso, me refiro ao blues não pela definição costumeira de um homem (negro) americano queixando-se de algo como “minha mulher me deixou, estou sem dinheiro e bla bla bla”, mas sim como uma expressão musical marcada pelo sofrimento, sem dúvidas, mas que tem em sua essência uma tentativa de enfrentamento dos problemas, de externalizar a carga emocional e os sentimentos para melhor lidar com eles, ou, como Albert Murray coloca em seu livro Stomping The Blues, “um ritual de purificação, de limpeza [...] contra maus espíritos”, sejam eles visíveis ou invisíveis.

Assim, as duas jornadas de Travis, primeiro da fronteira entre o Texas e o México até Los Angeles para reestabelecer a relação com Hunter, e depois de Los Angeles até Houston para reestabelecer a relação com Jane (e de Hunter com Jane), seguindo a lógica dos road movies que Wenders tanto ama, se configuram não só como jornadas físicas/geográficas mas também como jornadas internas, espirituais, emocionais, afetivas. Ou seja, rituais de purificação onde Travis tenta lidar com seu próprio fardo afetivo, do qual ele fugiu até antes do irmão encontra-lo, mas que também o puxa de volta depois disso.


No derradeiro encontro na cabine do “motel” entre Travis e Jane, quem também se revela como uma personagem baseada numa poética do blues é a própria Jane, não só por apresentar a mesma errância, impulsividade emotiva e jeito de alguém que guardou um turbilhão de sentimentos para si só por tempo demais, mas justamente por expor esses sentimentos e tentar lidar com seu próprio emocional. Sua fala é trabalhada num tipo de discurso semelhante ao do blues, alicerçado num estilo coloquial e honesto beirando a sentimentalidade que possibilita ao ouvinte/espectador se sensibilizar com o que é colocado e relacionar isso com sua própria vida, num processo de empatia que é essencial ao impacto não só do blues como também do cinema. Nessa hora, cada um dos ouvintes se lembra de suas próprias estórias de solidão, amores que não deram certo e viagens sem rumo pelo mundo afora. Afinal de contas, como o próprio Ry Cooder fala em sua canção “John Lee Hooker For President”, “everybody’s got to have a little blues sometime”.

Ao final do diálogo (e de sua segunda jornada), Travis consegue restabelecer a ligação entre Hunter e Jane, mas decide seguir viajando, sozinho e sem rumo. Apesar de ter atenuar seu sentimento de culpa em relação ao dano causado a Jane e Hunter, Travis acaba sendo incapaz de se livrar por completo dos conflitos com sua própria carga afetiva, ou, principalmente, assumir a responsabilidade de conviver em família com Jane e Hunter. Nessa hora, a trilha de Ry Cooder, depois de perder destaque e aparecer em diversas variações e nuances ao longo do filme, retorna mais blueseira e parecida com a versão original de “Dark Was The Night” do que nunca. Além de expressar o sentimento de um Travis talvez mais solitário do que nunca, a música parece até sentir empatia por Travis, como que lamentando junto com ele e oferecendo uma espécie de abrigo emocional feito de som. Nessa hora, Wenders sentiu que a música “capturou tão exatamente o espírito do filme” que “era como se Ry estivesse refilmando o filme com sua guitarra”.


Anos mais tarde, em 2003, Wim Wenders dirigiu um documentário sobre o blues intitulado The Soul of a Man, focado em três artistas, sendo um deles Blind Willie Johnson. Como conta a primeira cena do documentário, a canção “Dark Was The Night” foi enviada ao espaço sideral em discos contendo outras 26 canções e amostras de línguas e lugares da Terra, representando a como um representativo da diversidade de imagens e culturas do planeta. Os discos foram armazenados dentro de duas naves exploratórias que partiram em 1977, para ser apreciado por algum ser extraterrestre que possa o interceptar. Da mesma forma (se o mesmo fosse feito com filmes), Paris, Texas é também um desses filmes para se mandar para o espaço, para que os alienígenas conheçam por sua profunda sensibilidade e apuro estético. De preferência com a qualidade da cópia em 4K exibida gloriosamente no São Luiz. 
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5 de novembro de 2014

Obra (Gregório Graziosi, 2014)


Obra (Gregório Grazioli, 2014) é um filme com (quase que unicamente) por planos lindos (ou pelo menos que querem ser lindos), ok, mas ao seu fim eu admito que minha dificuldade foi encontrar nele algum uso futuro além de imagens/stills bonitas para hipsters cinéfilos colocarem em seus Tumblrs, loucos para enfeitar seus blogs com a beleza das paisagens, enquadramentos e jogos de luz e sombra em preto e branco do filme – personagens à parte. A impressão que se tem às vezes é a de se estar ouvindo uma música ambiente (das boas), ou vendo um daqueles quadros sofisticados de uma só cor que imitam o expressionismo abstrato, e rapidamente vão parando de atrair a atenção dos olhos.

Talvez numa tentativa de se manter equilibrado, o filme acaba dando lugar à monotonia, já que, por mais que as composições sejam lindas por si só, elas acabam perdendo o impacto quando todas elas são pensadas para serem bonitas. Da mesma forma, o fato de praticamente todas as tomadas apresentarem um ritmo lento – tanto em quantidade de informações e velocidade das ações mostradas quanto em duração – acaba dificultando bastante a ideia de pausa, com essa falta de variação tornando o filme engessado, arrastado, moroso. Além disso, e mais importantemente, a falta de ações por parte dos personagens ou dispositivos narrativos suficientes para carregarem o interesse do espectador ao longo do filme também dificultam a apreciação e podem até dar uma sensação de tédio.

De certo modo, a distância e a frieza com que as ações são filmadas reflete o jeito (excessivamente) austero e seco com que os dramas e temas humanos são tratados. O filme até consegue tocar em temas como isolamento, incomunicabilidade, opressão das pessoas diante da grandiosidade da metrópole e alienação tanto entre homem e mulher quanto entre diferentes gerações, mas sempre de forma vaga e longe de ser realmente instigante. Os diálogos, falados num ritmo excessivamente pausado e lento, soam falsos em vários momentos, e parecem enxutos e cortados numa abordagem que pretende ser simples e direta ao se ater ao essencial, mas que termina erradicando a naturalidade dos diálogos. Às vezes, é como se todos os personagens só falassem sobre os temas importantes do filme, direto ao ponto, sem os floreios, descaminhos e sutilezas de uma conversa costumeira.

No filme, fica claro desde o primeiro minuto que Graziosi se inspira amplamente na estética do italiano Michelangelo Antonioni, que ganhou notoriedade por abordar a alienação do homem e mulher modernos através de um estilo com ênfase em elipses, pausas, um conceito torto de “ação”, composições rigorosas e uso de imagens e da arquitetura para transmitir sensações, principalmente em seus filmes com Monica Vitti no início dos anos 1960: A Aventura (1960), A Noite (1961), O Eclipse (1963) e Deserto Vermelho (1964). No entanto, o que o Graziosi parece não conseguir emular em Obra é o fato de Antonioni mostrar, por trás (ou indo além) do estilo arquitetural, uma preocupação genuína com conflitos, anseios e relações humanas, coisas que parecem estar em segundo ou terceiro plano em Obra. E se Antonioni conseguia abordar a incomunicabilidade do homem moderno é porque os personagens de seus filmes realmente tentavam e ansiavam se comunicar, por mais difícil que isso parecesse para eles, enquanto os personagens de Obra (em especial o personagem principal) parecem quase propositalmente (ou excessivamente) lacônicos em alguns momentos, até porque este lado deles é pouquíssimo tensionado de verdade – seja direta ou indiretamente. Além disso, por mais que os personagens dos filmes de Antonioni divaguem e vagueiem pelos espaços, o diretor sempre nos dá esperança de algum tipo de possibilidade de mudança ou resolução, mesmo que seja baseada em questionamento (como em A Noite) ou ausência (como em O Eclipse). Em Obra, o protagonista parece mergulhado em tamanha inércia que o interesse em algum tipo de mudança ou solução para ele vai se esvaindo com o tempo.

Na verdade, Graziosi já mostrava uma tendência a enfatizar a comunicação através de imagens e um uso dramático de estruturas arquitetônicas no seu curta Monumento (2012), e em Obra isso até rende alguns bons momentos – sim, o filme os tem, é claro. Os efeitos sonoros durante e logo após a descoberta dos cadáveres na obra da família do protagonista – taí uma coisa que Obra tem em comum com os filmes de Antonioni... nos dois casos eu não consigo lembrar direito do nome dos personagens – funcionam bem em estabelecer tensão e expressar o horror mudo do protagonista. No resto do filme, a trilha sonora aparece vez ou outra, e com pouco destaque. Bem mais frequentes são os planos da cidade de São Paulo e de seus prédios – que muitas vezes ocupam o quadro quase inteiro -, retratados sempre de forma opressora, invasora, o que, quando a montagem ajuda, reflete bem o estado emocional lacônico e fechado do protagonista.

Irandhir Santos, por sua vez, até se esforça bastante em dar expressão a um protagonista que mal consegue se entender com seus próprios sentimentos e ansiedades, mas esbarra em um roteiro com diálogos de pouca fluidez, como já foi mencionado. Ele (o roteiro) até apresenta metáforas válidas, apesar de tanta ênfase à expressão visual. Entre as principais estão a tentativa do protagonista de restaurar uma igreja como equivalente à sua tentativa de reestabelecer uma conexão há muito perdida com os familiares e pessoas próximas, ou a hérnia na coluna hereditária justamente numa família de construtores, sinalizando a corrupção e sujeira no alicerce do prédio em construção ao longo do filme, e o nascimento do filho do protagonista como uma possibilidade futura de maior conexão afetiva com a família – ou até uma certa purificação dela -, além de representar finalmente um sucesso por parte do arquiteto – considerando que seu ousado e elegante projeto parece longe de se concretizar. No entanto, esse cuidado com as metáforas não remedia a aparente falta de desenvolvimento da narrativa, que parece estática – como os personagens - em vários momentos.


No geral, Obra mostra talvez o maior perigo de se basear um filme numa narrativa e num ritmo lento, contemplativo: o de ver o filme sucumbir a uma letargia que acaba sugando sua vida, mesmo que ele seja ornamentado com tanta beleza (ou de um jeito que insiste em ser belo). 
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4 de novembro de 2014

Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade (Daniel Aragão, 2014)


Antes de mais nada, cheguei à conclusão de que é quase impossível obter uma experiência prazerosa dos filmes de Daniel Aragão sem o desprendimento ou disposição suficientes para aceitar sua visão de mundo bastante particular, onde sensos de realismo são esquecidos ou ignorados a seu bel prazer, os personagens às vezes conversam de um jeito que faz parecer que eles são obrigados a falar de seus sentimentos e motivações como se fala num discurso, de forma tão aberta (ou honesta?) que parece falsa, tudo é exagerado em algum nível, e se dá mais importância ao exercício de estilo e à estética que ao conteúdo. E aceitar tudo isso não é fácil.

De certa forma, o filme se aproveita ou inspira na estrutura e em vários dos elementos – e até algumas composições - de Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971), colocando em evidência a hipocrisia, perversão e corrupção dos controladores de mentes ou de poderes para criticá-los. Além disso, nos dois filmes o personagem principal estabelece uma série de encontros com outros personagens que é posteriormente repetida de forma trágica e perversa, com a diferença de que pode-se dizer que Joli passa por duas “curas” – a primeira quando sai da clínica, no início do filme, e a segunda quando é submetida ao tratamento de choque -, enquanto Alex só passa por uma. No entanto, em Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade (Daniel Aragão, 2014) a derradeira cooptação de Joli pelos agentes controladores (no caso, o namorado e o pai) fica menos convincente ao ser misturada com fatores relacionados a traumas psicológicos relacionados à infância que tornam a crítica aos controladores menos precisa e importante. E enquanto Kubrick usa a violência dos controladores contra Alex para defender o livre-arbítrio e a capacidade de escolher entre o bem e o mal essenciais a Alex (com propensão maior ao mal), o que Aragão parece defender em Joli é sua capacidade de escolher entre um comportamento "normal", regrado (ou seja, falso) e outro subversivo e impulsivo (ao qual Joli parece mais propensa), movido por traumas e sentimentos infantis - o que é uma defesa, por  consequência, do próprio caráter subversivo do diretor.

Ao contrário de Boa Sorte, Meu Amor (2012), que já tinha uma forma rigorosa mas parecia seguir cursos diferentes devido a uma discordância entre forma e conteúdo, em Prometo Um Dia... o lado “porralouca” e subversivo de Aragão finalmente se equivale e é refletido na forma, numa clara evolução por parte do diretor. Isso resulta num filme cuja estética é excessiva, quase attention whore, com luzes estouradas, filtros coloridos, ângulos de câmera arrojados, longos zoom-ins e composições rebuscadas se aproveitando de uma grande angular. Apesar dessas explorações estéticas serem frequentemente impressionantes e belas, dando ao filme um quê de psicodelia dos anos 1960/1970 – mas muito over-the-top – que corresponde até certo nível à personalidade louca de Joli, em certos momentos elas chamam tanto a atenção para si (e consequentemente para a figura de Aragão como auteur) que acabam distraindo ou tornando a ação em si menos em interessante. Sem falar que não dá para estabelecer uma relação fechada entre a expressão da personalidade de Joli e a estética, já que Joli varia muito ao longo do filme e a estética se mantém quase sempre excessiva.

Mas é uma pena que a subversão de Aragão não signifique também uma atitude contra o machismo que a própria Joli condena no filme, em discurso. A única personagem feminina de destaque com a exceção da própria Joli é a amiga da protagonista, a portuguesa Manoela, com quem Joli só consegue conversar sobre drogas, ou... homens (no estilo “quem é pegador mesmo” e etc). Isso quando Joli não está atacando Manoela com um discurso hipócrita e moralista, que condena a portuguesa pelo mesmo estilo ‘descolado porém sem muita profundidade’ que o diretor parece emanar. Já a mãe de Joli é reduzida a uma razão para o pai sentir atração pela filha e nada mais. Além disso, a sexualidade de Joli parece sempre passiva, dependente ou do pai ou do namorado, quando não é uma expressão da loucura e do distúrbio psicológico da personagem, como na cena de masturbação, que perde seu potencial libertário e é usada quase como amostra de ‘mulher louca e histérica’. A única cena que não se encaixa nisso é uma em que Joli expressa toda a sua “porralouquice” ao beijar à força um estereótipo de mecânico negro e pobre, numa cena em que o senso de ridículo ganha contornos até preconceituosos – Joli pareceria tão louca se beijasse um branco rico e amigo do seu namorado?. A visão fetichista de Aragão sobre o corpo de Joli também fica evidente na cena em que ela dispensa a empregada e passa a encerar/limpar o chão completamente nua, numa cena que poderia ser de empoderamento da personagem se a ação não fosse ridicularizada.

Não que esses excessos não acabem rendendo algumas cenas realmente boas. A cena de Joli posando em harmonia para a câmera com o padre e o PM, por exemplo, é hilária. Também chamam a atenção algumas cenas onde a realidade absurda se transforma em delírio (de tão absurda que é), como na cena em que a protagonista entra na favela e vê uma multidão de crianças mortas pelo crack. Esta cena mostra também uma crítica sociopolítica que, apesar de estar absolutamente em segundo plano e não ser aprofundada, é válida até certo ponto por mostrar a perversão e hipocrisia por trás das grandes famílias e figuras da política nacional/local, e sua responsabilidade em problemas graves da sociedade – especificamente os relacionados ao tráfico de drogas. Os sonhos que tentam explicar a relação de Joli com o pai desde a infância também são interessantes, apesar dos esquemas freudianos da relação dos dois a partir da segunda “cura” parecerem às vezes absurdos demais. De qualquer forma, esse segmento do filme mostra um diretor assumindo seu lado subversivo e tomando liberdades do que nunca, de forma até admirável, de certa forma.

O final também coloca em destaque, mais do que nunca, a capacidade da atriz Bianca Joy Porte, que justifica a fascinação da câmera por seu rosto – que rende alguns closes lindos – com muita entrega. Apesar dos problemas na construção da personagem, ela se mantém na defesa dela do início ao fim, mesmo nas falas mais absurdas, como “o que eu preciso é reconquistar minha vida!” e etc.

Outro nome que se mantém digno de aplausos é o do tecladista Bernie Worrell, que assina a trilha sonora, alternando entre o melancólico, o onírico e o esquizofrênico (com diferentes camadas de teclado indo em direções diferentes ao mesmo tempo). A trilha é essencial em dar ao filme seu clima psicodélico, ou em representar através de sons a confusão dentro da cabeça de Joli em alguns momentos. Enxergando por certo ângulo, o filme de Aragão pode até parecer com uma daquelas canções mais ambiciosas e cheias de excessos da Funkadelic, antiga banda de Bernie, como “Promentalshitbackwashpsychosis Enema Squad (The Doodoo Chasers)” e “Good Thoughts Bad Thoughts”. Elas são divertidas, tem a forma instigante, ousada e excêntrica, mas de um jeito em que não dá para se levar muito a sério os comentários sociais que seu autor (no caso, George Clinton) expressa de forma quase jocosa - não que essa seja a parte mais importante do filme de Aragão ou das canções citadas, mas é algo a se considerar, naturalmente. Mesmo com todos esses problemas e ambivalências, tenho certeza de que o cinema seria mais chato sem Daniel Aragão. 
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