“Querido diário,
hoje o céu tava bem ensolarado e cheio de nuvens bonitas, “Yellow” do Coldplay
tava tocando na rádio, e eu aprendi como nascem as vespas”. Assim poderia ser Boyhood, se seu personagem principal, o
menino Mason, pudesse expressar seus sentimentos através de narrações em off.
Ou se ele escrevesse dessa maneira tosca que se forma quando um adulto tenta –
pessimamente - escrever como criança. Mesmo sem nenhuma narração em off e nem sequer uma menção à palavra
“diário”, Boyhood às vezes dá a
impressão de que estamos lendo o diário de Mason dos 5 aos 17 anos. Ou vendo um
álbum de família com suas fotos. Ou, mais precisamente, vendo pedaços de seu
amadurecimento através dos olhos de um observador que se mantém sempre próximo
e afetuoso.
Afinal de
contas, o filme não é feito de impressões pessoais de Mason ou segue
estritamente sua perspectiva, já que, por mais que seja centrado nele, Boyhood também traz cenas centradas das
quais Mason não participa diretamente, principalmente envolvendo sua mãe, seu
pai e sua irmã. O que é compreensível, já que a estória de cada um de nós passa
também por como afetamos e somos afetados pelas pessoas mais próximas a nós.
Na prática,
Linklater constrói a história do amadurecimento de Mason através de fragmentos,
pedaços de vida. Entre esses fragmentos se misturam uma série de alegrias,
decepções, relações afetivas e ritos de passagem e aprendizado que, reunidos,
formam o processo de amadurecimento do garoto. Ok, isso já era de se esperar,
mas a escolha desses ritos de passagem a serem colocados na tela é bastante
interessante. Os ritos mais óbvios como formatura e primeira namorada são
incluídos, claro, mas outros tão clichês quanto como o primeiro beijo e a primeira
transa são deixados de lado, enquanto algumas memórias aleatórias que parecem
só permanecer na cabeça de uma criança ganham importância, como quando Mason
reclama que o pai esqueceu de guardar seu carro para quando ele completasse 16
anos. Linklater sabe que o que realmente molda a personalidade de uma pessoa
está não só nos grandes e memoráveis momentos, mas também nas pequenas coisas
que às vezes você acaba esquecendo, como aquele desenho que você assistia
quando tinha sete anos, ou aquela sua paixão de infância que acabou meio
esquecido (grafite e Harry Potter, no caso de Mason).
Nesse sentido,
as várias músicas que fazem parte da trilha sonora do filme acabam funcionando
também como uma linhagem própria de ritos de passagem, de certa forma,
demarcando os diferentes momentos do filme como “a época em que música tal
tocava na rádio” ou “a época em que Mason gostava da banda tal”. Sem falar no
modo como a música é vista como uma importante forma de ligação e troca de
afeto entre as pessoas, em especial nas cenas em que o pai de Mason lhe
apresenta uma música country e lhe dá o “Álbum Negro dos Beatles”. A relação de
Mason com os videogames também acaba servindo para demarcar a mudança de tempo,
considerando o modo como o menino vai trocando de consoles ao longo do filme.
Além disso, a narrativa mostra, de maneira simples e bastante “justa”, o modo
como os games acabam servindo para Mason como uma forma de estabilizar ou
descarregar suas emoções, em especial na cena em que ele é mostrado jogando um
jogo de boxe com um colega logo após a mãe terminar com o padrasto de maneira
traumática.
A presença tão
frequente dessas “pequenas coisas” também acaba reforçando o quanto essa
construção baseada em fragmentos e pedaços permite ao roteiro ser bastante
solto, não tendo que seguir uma linha reta em direção a um objetivo. Ninguém
discorda que Boyhood é uma história
sobre amadurecimento, perda de inocência, relações familiares, a passagem do
tempo e as coisas que se ganham e se perdem com ela e bla bla bla, mas
Linklater nunca parece querer forçar uma mensagem ou ponto específico,
preferindo apenas observar, numa perspectiva em que mesmo os personagens
secundários que poderiam ser facilmente ridicularizados (como os avós postiços
de Mason que fazem o estilo WASP) parecem ser tratados com atenção, respeito, e
às vezes até carinho, ganhando espaço e tempo consideráveis na tela.
O diretor não
cai nas duas abordagens mais comuns de filmes com crianças ou adolescentes, não
ficando nem naquela coisa crua e realista de “oh, como essa criança sofre, que
drama, meu deus, ainda bem que ela consegue ser criança apesar de tudo” e nem
com uma visão idealizada do “mundo infantil e sonhador da criança com
imaginação fértil”. Outro diretor poderia explorar mais longamente ou
enfaticamente as partes dramáticas, por exemplo, mas o filme é visto - até
certo ponto - pela perspectiva de Mason. Se as crianças e adolescentes já têm
tendência a se fechar em seu próprio mundo quando se veem ameaçadas ou
amedrontadas, isto é ainda mais forte – e fica evidente no filme – em Mason, um
garoto introspectivo e quieto.
Um bom exemplo dessa
abordagem está presente na cena em que Mason encara a primeira mudança, aos
cinco anos, e fica sem tempo de ligar pra um dos seus amigos – o que mais tinha
aparecido no filme até aquele momento – antes da mudança. Na hora da partida do
carro, o menino acompanha Mason numa bicicleta, acenando. Mason se limita a
encarar a janela, mal esboçando reação. Ele até parece meio perdido, triste,
mas internaliza tudo. Outro diretor poderia colocar uma música para realçar a
emoção da cena ao fundo, ou então orientar o ator a expressar mais tristeza em
seu rosto. Não neste filme. A cena não tem trilha sonora, e passa logo. Corte.
Mason já tem seis anos. Ecos da cena em que a personagem principal de Um Alguém Apaixonado (Abbas Kiarostami,
2012) parece reencontrar sua vó, num momento emocionalmente fortíssimo para
ela, mas se mantém calada – e a câmera afastada, como que em respeito.
Esse tipo de
cena também realça o quanto o diretor se preocupa em manter um aspecto de “vida
real” no filme, seja em seu tom informal ou em sua estética simples,
minimalista, despretensiosa, que mantém um tom meio realista mas sem ser dura
ou crua. Esses sopros de “vida real” ficam evidentes quando Linklater resolve
dedicar tempo a figuras excêntricas encontradas na rua, como o professor louco
que fala sozinho no bar ou a dupla de músicos tocando na calçada em plena
madrugada. Esse tipo de cena dá ao filme um sopro de espontaneidade, e o
aproxima de um cinema que preza por colocar seus personagens fora da
artificialidade dos estúdios, mandando-os para as ruas, os exteriores, enfim. É
evidente que o diretor quis buscar esse tipo de estética quando fez com que os
atores usassem suas próprias roupas no filme. Mesmo que isso não fique claro
para a plateia, acaba alterando a forma como esses atores se preparam e lidam
com seus personagens.
E o que poderia
dar mais sensação de “vida real” que acompanhar o amadurecimento dos atores ao
longo de 12 anos inteiros? Ao fazer isso, Linklater nos dá a chance de
presenciar as evidências passagem do tempo no corpo e mente de uma pessoa de
uma forma preciosa, que é rara no cinema. Ao vermos Mason – mais do que os
outros, considerando que ele é o personagem principal – crescer, podemos
reparar nos seus diferentes penteados, aparecimento de brincos, crescimento de
espinhas, entre outras coisas - imagino que essa seja uma das razões das
pessoas para assistirem séries, mas não saberia dizer com certeza. Nesse
sentido, a escolha de uma criança/menino como personagem a ser acompanhado é
perfeita, já que a segunda infância e a adolescência são provavelmente as fases
de mais transformações – tanto físicas quanto psicológicas – na vida de uma
pessoa. Na prática, esse acompanhamento também permite estabelecer uma relação
de empatia e proximidade com os personagens que é totalmente diferente – e mais
especial – que a que normalmente se tem. De certa forma, é uma relação próxima
à que se tem com o casal da trilogia Antes
Do Amanhecer (1995), Antes Do
Pôr-do-Sol (2004) e Antes da
Meia-Noite (2013), com a diferença que as mudanças em Boyhood vão acontecendo aos poucos e são menos evidentes – por
razões óbvias, já que os filmes da trilogia foram filmados de nove em nove
anos. De fato, as divagações filosóficas de Mason quando atinge os 16 e começa
a falar sobre os problemas de comunicabilidade entre as pessoas, os males do
mundo capitalista e o enorme peso das expectativas impostas a homens e mulheres
pela sociedade até lembram os diálogos do casal em Antes do Amanhecer, quando ainda eram jovens e sonhadores.
Não que o filme seja
absolutamente desprovido de problemas, ou de pequenos detalhes que possam
incomodar. A cena do término de Mason com sua namorada da adolescência, por
exemplo, parece um pouco apressada ou mal resolvida em seu início, com um ou
dois minutos se passando até que a situação dos dois fique realmente clara. A transformação
do segundo padrasto de Mason entre cara legal e bêbado imbecil também parece
meio estranha, menos por repetir a transformação do primeiro padrasto – o que
não é em si um problema – e mais por parecer súbita demais. Já a cena em que o “latino”
que foi de assistente de pedreiro a gerente de restaurante agradece à mãe de
Mason pelo conselho parece meio forçada, apesar de ser válida por dar a um personagem
de pouco importância a chance de também se transformar e amadurecer com o
passar dos anos.
No entanto, não
deixa de ser impressionante o fato de Linklater manter o filme tão coerente,
tanto em estética quanto em abordagem e temática, ao longo de todos esses 12
anos, e sem apelar para manipulações emocionais nem forçar reações ou pontos de
vista. E tudo isso ainda se permitindo dar chance a alguns planos-detalhe mais
virtuosísticos que acabam fugindo do padrão minimalista que o próprio diretor
estabelece, como um belíssimo plano fechado do último fio de cabelo de Mason reluzindo
próximo a seu olho antes de ser cortado, um ou dois planos-sequência em que os
personagens são seguidos pela casa, ou a tomada da fogueira sendo mijada pelo
menino.
Os próprios
atores também chamam a atenção por coesão semelhante, considerando que eles só
se encontravam alguns dias no ano para gravar as cenas. Nesse sentido, Ellar
Coltrane surpreende pela maturidade como ator – mesmo percebendo que há horas
em que fica difícil separar a vida de Mason com a vida do ator -, e o mesmo se
aplica, em menor grau devido até à sua participação, a Lorelei Linklater, que
interpreta Samantha. Patricia Arquette como a mãe e Ethan Hawke como o pai
também merecem elogios por atuações de grande entrega e absolutamente
convincentes e cheias de nuances.
Planos e atuações
à parte, a principal qualidade do filme é dar ao público um personagem pelo qual
ele pode sentir empatia, afeição, e, principalmente, uma sensação de
reconhecimento, como se pudéssemos ver as cenas do filme e ao mesmo tempo lembrar
memórias de nossas próprias vidas, pensando “é, foi mais ou menos assim mesmo
que aconteceu comigo”. Há dúzias de situações presentes no filme que cheguei a
vivenciar de forma semelhante, mas não me cabe lista-las aqui. Apenas posso dizer
que me sinto grato de ter relembrado minhas memórias da infância e da
adolescência de forma tão bonita e num filme tão belo, e grato de ter criado,
nem que apenas pelas quase três horas de duração do longa, uma relação de
tamanha cumplicidade e até afeto pelos personagens de um filme - que depois de um tempo parecem até amigos de infância.
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