Antes de mais
nada, cheguei à conclusão de que é quase impossível obter uma experiência
prazerosa dos filmes de Daniel Aragão sem o desprendimento ou disposição
suficientes para aceitar sua visão de mundo bastante particular, onde sensos de
realismo são esquecidos ou ignorados a seu bel prazer, os personagens às vezes
conversam de um jeito que faz parecer que eles são obrigados a falar de seus
sentimentos e motivações como se fala num discurso, de forma tão aberta (ou
honesta?) que parece falsa, tudo é exagerado em algum nível, e se dá mais
importância ao exercício de estilo e à estética que ao conteúdo. E aceitar tudo
isso não é fácil.
De certa forma,
o filme se aproveita ou inspira na estrutura e em vários dos elementos – e até
algumas composições - de Laranja Mecânica
(Stanley Kubrick, 1971), colocando em evidência a hipocrisia, perversão e
corrupção dos controladores de mentes ou de poderes para criticá-los. Além
disso, nos dois filmes o personagem principal estabelece uma série de encontros
com outros personagens que é posteriormente repetida de forma trágica e perversa,
com a diferença de que pode-se dizer que Joli passa por duas “curas” – a primeira
quando sai da clínica, no início do filme, e a segunda quando é submetida ao
tratamento de choque -, enquanto Alex só passa por uma. No entanto, em Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade (Daniel Aragão, 2014) a derradeira cooptação
de Joli pelos agentes controladores (no caso, o namorado e o pai) fica menos
convincente ao ser misturada com fatores relacionados a traumas psicológicos relacionados
à infância que tornam a crítica aos controladores menos precisa e importante. E
enquanto Kubrick usa a violência dos controladores contra Alex para defender o
livre-arbítrio e a capacidade de escolher entre o bem e o mal essenciais a Alex (com propensão maior ao mal), o que Aragão parece defender em Joli é sua capacidade de escolher entre um comportamento "normal", regrado (ou seja, falso) e outro subversivo e impulsivo (ao qual Joli parece mais propensa), movido por traumas e sentimentos
infantis - o que é uma defesa, por consequência, do próprio caráter subversivo do diretor.
Ao contrário de Boa Sorte, Meu Amor (2012), que já tinha
uma forma rigorosa mas parecia seguir cursos diferentes devido a uma
discordância entre forma e conteúdo, em Prometo
Um Dia... o lado “porralouca” e subversivo de Aragão finalmente se equivale
e é refletido na forma, numa clara evolução por parte do diretor. Isso resulta num filme cuja estética é excessiva, quase
attention whore, com luzes estouradas,
filtros coloridos, ângulos de câmera arrojados, longos zoom-ins e composições
rebuscadas se aproveitando de uma grande angular. Apesar dessas explorações
estéticas serem frequentemente impressionantes e belas, dando ao filme um quê
de psicodelia dos anos 1960/1970 – mas muito over-the-top – que corresponde até certo nível à personalidade
louca de Joli, em certos momentos elas chamam tanto a atenção para si (e
consequentemente para a figura de Aragão como auteur) que acabam distraindo ou tornando a ação em si menos em
interessante. Sem falar que não dá para estabelecer uma relação fechada entre a
expressão da personalidade de Joli e a estética, já que Joli varia muito ao
longo do filme e a estética se mantém quase sempre excessiva.
Mas é uma pena
que a subversão de Aragão não signifique também uma atitude contra o machismo
que a própria Joli condena no filme, em discurso. A única personagem feminina de
destaque com a exceção da própria Joli é a amiga da protagonista, a portuguesa
Manoela, com quem Joli só consegue conversar sobre drogas, ou... homens (no
estilo “quem é pegador mesmo” e etc). Isso quando Joli não está atacando
Manoela com um discurso hipócrita e moralista, que condena a portuguesa pelo
mesmo estilo ‘descolado porém sem muita profundidade’ que o diretor parece emanar. Já
a mãe de Joli é reduzida a uma razão para o pai sentir atração pela filha e
nada mais. Além disso, a sexualidade de Joli parece sempre passiva, dependente
ou do pai ou do namorado, quando não é uma expressão da loucura e do distúrbio
psicológico da personagem, como na cena de masturbação, que perde seu potencial
libertário e é usada quase como amostra de ‘mulher louca e histérica’. A única
cena que não se encaixa nisso é uma em que Joli expressa toda a sua “porralouquice”
ao beijar à força um estereótipo de mecânico negro e pobre, numa cena em que o
senso de ridículo ganha contornos até preconceituosos – Joli pareceria tão
louca se beijasse um branco rico e amigo do seu namorado?. A visão fetichista
de Aragão sobre o corpo de Joli também fica evidente na cena em que ela
dispensa a empregada e passa a encerar/limpar o chão completamente nua, numa
cena que poderia ser de empoderamento da personagem se a ação não fosse
ridicularizada.
Não que esses
excessos não acabem rendendo algumas cenas realmente boas. A cena de Joli posando
em harmonia para a câmera com o padre e o PM, por exemplo, é hilária. Também
chamam a atenção algumas cenas onde a realidade absurda se transforma em
delírio (de tão absurda que é), como na cena em que a protagonista entra na
favela e vê uma multidão de crianças mortas pelo crack. Esta cena mostra também
uma crítica sociopolítica que, apesar de estar absolutamente em segundo plano e
não ser aprofundada, é válida até certo ponto por mostrar a perversão e
hipocrisia por trás das grandes famílias e figuras da política nacional/local,
e sua responsabilidade em problemas graves da sociedade – especificamente os
relacionados ao tráfico de drogas. Os sonhos que tentam explicar a relação de
Joli com o pai desde a infância também são interessantes, apesar dos esquemas
freudianos da relação dos dois a partir da segunda “cura” parecerem às vezes
absurdos demais. De qualquer forma, esse segmento do filme mostra um diretor
assumindo seu lado subversivo e tomando liberdades do que nunca, de forma até
admirável, de certa forma.
O final também
coloca em destaque, mais do que nunca, a capacidade da atriz Bianca Joy Porte,
que justifica a fascinação da câmera por seu rosto – que rende alguns closes
lindos – com muita entrega. Apesar dos problemas na construção da personagem,
ela se mantém na defesa dela do início ao fim, mesmo nas falas mais absurdas,
como “o que eu preciso é reconquistar minha vida!” e etc.
Outro nome que
se mantém digno de aplausos é o do tecladista Bernie Worrell, que assina a
trilha sonora, alternando entre o melancólico, o onírico e o esquizofrênico
(com diferentes camadas de teclado indo em direções diferentes ao mesmo tempo).
A trilha é essencial em dar ao filme seu clima psicodélico, ou em representar
através de sons a confusão dentro da cabeça de Joli em alguns momentos. Enxergando
por certo ângulo, o filme de Aragão pode até parecer com uma daquelas canções
mais ambiciosas e cheias de excessos da Funkadelic, antiga banda de Bernie,
como “Promentalshitbackwashpsychosis Enema Squad (The Doodoo Chasers)” e “Good
Thoughts Bad Thoughts”. Elas são divertidas, tem a forma instigante, ousada e excêntrica,
mas de um jeito em que não dá para se levar muito a sério os comentários sociais que seu autor (no
caso, George Clinton) expressa de forma quase jocosa - não que essa seja a parte mais importante do filme de Aragão ou das canções citadas, mas é algo a se considerar, naturalmente. Mesmo com todos esses problemas e ambivalências, tenho certeza
de que o cinema seria mais chato sem Daniel Aragão.
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