8 de junho de 2015

Mad Max: Estrada da Fúria (George Miller, 2015)


Witness me [‘me testemunhem’]!”, dizem os War Boys de Mad Max: Estrada da Fúria (George Miller, 2015). Talvez esta seja a frase mais repetida ao longo do filme, e é também a que mais aproxima esta distopia pós-apocalíptica com o presente. Se vivemos em um mundo em que as pessoas estão atualmente chamando atenção para si mesmas e vigiando as ações umas das outras a todo o momento, nada mais justo do que tornar os peões/guerreiros da sociedade retratada no filme obcecados por exibir seus feitos gloriosos conquistados em batalha uns para os outros. Além disso, também diz muito sobre esta sociedade o fato dessa frase ser dita em momentos de absoluta loucura, pretenso heroísmo e destruição. Para os War Boys, estes são justamente os seus momentos de transcendência, de contato com o sagrado. No caso, este sagrado seria a realização de feitos grandiosos o suficiente para leva-los ao Valhalla do deus nórdico Odin, onde descansam (ou lutam) eternamente (uma parte d)os guerreiros mortos em batalha. Mas, até para usar um exemplo mais conhecido, o que parece é que o mundo do filme é governado pelo deus da guerra grego Áries, e que a história foi conjurada por ele a ferro e fogo e muita, muita poeira. Tanta poeira que o próprio ato de assistir o filme parece dar a impressão de se tomar um banho de areia quente do deserto.

Além de materializar a ganância humana e sua irresponsabilidade ao explorar os recursos naturais, o deserto sem fim do filme acaba representando também a ausência completa de valores morais e humanidade nos sentidos mais básicos dessas palavras. Assim, o deserto se torna um campo de batalha sem fim para que os senhores da guerra briguem e matem os capangas uns dos outros por razões mesquinhas. Este cenário evidencia uma crítica bastante pessimista sobre o momento político atual (ou dos últimos 100 anos, basicamente) no que se refere ao militarismo, que se torna ainda mais desoladora quando fica claro que o sonhado Vale Verde (que seria o último lugar conhecido com água potável à disposição e uma camada vegetal) se tornou um pântano inóspito.

Por mais que esta ideia de que a Terra foi transformada em um deserto sem vida por causa da ganância da humanidade (e de seus senhores da guerra) não seja exatamente das mais originais, há um trabalho de caracterização dessas figuras de poder que é bastante interessante. Para começar, Immortan Joe é retratado como frágil e doente por dentro, só capaz de manter uma imagem de autoridade após vestir uma máscara e uma armadura ameaçadoras. Immortan também é tratado como quase como uma divindade pela população de sua Cidadela (só faltou uma estátua dele em tamanho real), mas não passa de um egoísta que toma quase todos os recursos à disposição para si, como todo bom ditador. Joe é assessorado por um ser conhecido como ‘The People Eater’, um homem obeso (com a obesidade sendo associada ao excesso e à avareza) e asqueroso que regula os gastos militares de Joe rigorosamente mas que não vê problema no derramamento de sangue que esses gastos provocam. Pelo contrário, ele faz questão de testemunhá-lo. A terceira figura é ‘The Bullet Farmer’, um sádico que acha divertidíssimo atirar em qualquer um que apareça na sua frente, principalmente quando fica cego, momento em que a cegueira daqueles responsáveis por manter a ordem e/ou “vigiar e punir” se torna literal. A caracterização dos War Boys segue a mesma mistura de exagero, caricatura e sarcasmo, e é de Nux, o mais importante dos War Boys (dentro da narrativa), aquela que me parece ser a frase mais impactante do filme: “mas não é nossa culpa!” (sobre o ímpeto dos War Boys de buscarem a ida ao Valhalla através da matança de inimigos, entre outros feitos de guerra). Assim, através na ênfase da crença dos War Boys, Miller ultrapassa a crítica às figuras de poder do filme (e às suas imagens) para criticar também a ideologia centrada na guerra e na destruição que norteia a sociedade do filme, e, por consequência, a ideologia militarista de todas as potências bélicas do mundo.


Além da ideologia militarista, outro aspecto ideológico criticado duramente no filme é o machismo e todo o sistema de exploração da mulher da sociedade contemporânea (e não só dela). Na Cidadela, as mulheres representam uma absoluta minoria da população, com a maioria sendo War Boys (na cena do nascimento da criança de Splendid, por exemplo, fica claro que os bebês designados como homens são muito mais valorizados, com sugestão de que as crianças designadas como mulheres são mortas após o nascimento). Assim, as mulheres que lá trabalham servem ou para produzir leite, ou para gerar filhos (no caso, as cinco mulheres de Immortan Joe) ou para guerrear (Furiosa). Enquanto à crítica à exploração das amas-de-leite é feita através da caracterização delas como vacas leiteiras (com máquinas presas aos seios para sugar o leite e tudo), a concepção das esposas segue uma lógica inversa, com supermodelos as interpretando para possibilitar uma crítica à objetificação e fetichização do corpo feminino e ao padrão de beleza opressor imposto às mulheres pela mídia contemporânea (e principalmente por Hollywood). Crítica semelhante é feita na escolha de Charlize Theron como Furiosa, já que o status de sex symbol da atriz é completamente negado. Furiosa aparece como uma mulher que, depois de anos e anos de sofrer os mais variados tipos de violência, se torna desfigurada e até masculinizada (com vários traços visuais dos War Boys, inclusive), mas também forte e determinada a resistir ao sistema que oprimiu ela (e outras mulheres) por tanto tempo. As outras mulheres do filme, as ‘Many Mothers’ do Vale Verde, também são caracterizadas como fortes e determinadas, mesmo sendo quase todas idosas (só uma delas é jovem, o que acaba ampliando a variedade de personagens femininas na trama).


Enquanto isso, o próprio Max é tratado mais como observador, com pouca demonstração de subjetividade. Mesmo que seu lado melancólico e traumatizado seja trabalhado de tempos e tempos através dos flashes de fantasmas que o lembram das falhas de seu passado, Miller lhe dá pouca voz, deixando que os personagens ao redor dele ganhem mais espaço. Nenhum ganha mais espaço que Furiosa, que parece muitas vezes ser a personagem principal do filme. A relação dos dois é particularmente interessante por ser baseada na fraternidade e no respeito mútuo ao invés de desejo sexual (como é de praxe na relação entre personagens masculinos de filmes de ação, a ligação entre os dois é iniciada após uma luta corpo-a-corpo em que eles percebem sua equivalência de força e a capacidade de guerrear um do outro). Aliás, os dois aparecem como dessexualizados, a julgar pela cena em que Max vê as cinco esposas tomando banho seminuas e não parece ter nenhuma reação de cunho sexual. Além disso, os dois acabam simbolizando a importância da integração dos dois sexos (ou a união de forças em prol de um objetivo comum), como na cena em que Max oferece apoio para que Furiosa use um rifle sniper (ele erra três tiros, ela – com a ajuda dele – acerta de primeira).

Claro, todas essas sátiras e símbolos não adiantariam de muita coisa se o filme não funcionasse como o “filme de ação” que ele se propõe a ser, com as obrigatórias explosões, perseguições e cenas de violência gráfica. No entanto, o que se vê é um longa que justifica (e materializa) a devoção dos War Boys a imagens de volante e do (motor) V8 ao engatar a quinta marcha logo nos primeiros minutos e praticamente não soltar mais. Muito disso se deve à montagem, que consegue dividir a tensão e a atenção entre vários pontos nas cenas de perseguição sem parecer apressada ou forçada. A eficácia da montagem chega a tal ponto que o filme se dá ao luxo de ter fade-outs dramáticos a cada bloco narrativo, dando chance para os espectadores respirarem e perceberem o quão rápido estavam correndo junto com o filme. Nestas partes mais calmas (principalmente o encontro com as ‘Many Mothers’ no deserto), os diálogos, precisamente em sua falta de eloquência e profundidade, revelam pessoas afetivamente aleijadas e reduzidas aos instintos mais básicos depois de tantos anos de convivência em um mundo marcado por selvageria e violência.


Muito da sensação de imersão do filme se deve à trilha sonora, que dá o correspondente sonoro para o heavy metal insano e agressivo que transcorre na tela, materializado de forma perfeitamente exagerada através do guitarrista com uma guitarra lança-chamas de dois braços. Outro fator que ajuda na imersão é a sensação de verossimilhança, provocada quando achamos que aquelas imagens de fogo, sangue e metal retorcido realmente ocorreram em alguma dimensão concreta, e não só numa tela de computador de algum canto dos Estados Unidos, tornando a tensão mais tangível, mais “real”. Assim, George Miller prova que (ainda) é possível fazer um grandíssimo (em magnitude, ambição, destreza técnica e vários outros fatores) filme de ação sem apelar para uma infinidade de efeitos especiais. E, mais importantemente, que filmes de ação não são necessariamente “de machão” ao dar espaço e importância mais do que merecidos às suas personagens femininas, principalmente Furiosa. 
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1 de junho de 2015

E Tua Mãe Também (Alfonso Cuarón, 2001)


“A vida é como uma espuma, e vocês tem que se doar como o mar”. A frase, dita por Luisa ao final de E Tua Mãe Também (Alfonso Cuarón, 2001) como alguém que dá uma lição de vida do alto de sua sabedoria, acaba destoando um pouco do resto do filme por ser a única parte em que ele aproxima de frases de efeito ou grandes verdades, mas resume bem o espírito do longa de Alfonso Cuarón. Em sua viagem em direção ao litoral mexicano, os três protagonistas, Tenoch, Julio e Luisa, exploram ao máximo suas amizades, liberdades e sexualidades, em trajetórias paralelas que lembram a história de Ícaro em suas buscas impetuosas e ambiciosas por liberdade e glória seguidas de decadência e destruição.

Assim como em inúmeros road movies, a jornada dos três começa por uma busca por liberdade, mas por razões diferentes. Os inseparáveis Tenoch e Julio são caracterizados desde o começo do filme como adolescentes irresponsáveis, que riem dos peidos uns dos outros e escondem o cheiro de maconha quando os pais chegam em casa. Para eles, a viagem é uma oportunidade de fugir das amarras dos pais, e também de participar de uma última grande aventura antes da faculdade. Para Luisa, a viagem é uma maneira de escapar da convivência sufocante com o marido, que acabou de traí-la, e talvez tentar uma última aventura irresponsável antes que seja tarde demais.


Mas essa é só a superfície, de certa forma. O mais interessante é a maneira como essa busca de liberdade é expressa através da sexualidade dos personagens de forma franca e aberta, com ela não sendo explorada por si só ou para chamar a atenção, e sim para ajudar na construção dos personagens e no estabelecimento da relação entre eles. Este processo já começa nas duas primeiras cenas, onde tanto Julio quanto Tenoch transam de maneira desajeitada e apressada com suas namoradas, sem demonstrar preocupação alguma com o prazer delas. Por outro lado, Luisa é retratada como recatada e vulnerável entre os dois adolescentes a princípio, até por causa da “ausência” do marido. No entanto, ao transar tanto com Julio quanto com Tenoch e depois passar a lhes dar lições sexuais, Luisa não só se estabelece como a dominadora entre os três como também acirra o conflito no relacionamento de Tenoch e Julio, criando uma disputa para ver quem é mais “machão” e irá tomar Luisa para si entre eles, o que é prontamente ironizado, já que nenhum dos dois consegue transar com ela por mais de alguns segundos. Dentro deste quadro, até uma simples discussão entre eles sobre os méritos do chamado “fio terra” vira uma forma de colocar Luisa como mais madura que os dois – e portanto dominante.

Em paralelo, a relação de amizade entre Tenoch e Julio vai ficando cada vez mais estreita e tensa no campo sexual, também desde o início do filme, quando eles se masturbam juntos na piscina e se veem nus no vestiário de um clube. Até o fato de eles transarem um com a namorada do outro ajuda a reforçar essa ideia de proximidade e compartilhamento no campo sexual. Essas duas trajetórias sexuais paralelas acabam se combinando no final do filme, na cena no ménage a trois entre os protagonistas, quando não só Luisa exerce seu controle sobre os dois ao convencê-los a transar com ela ao mesmo tempo – mesmo depois dela mesmo tê-los proibido de fazer isso -, como Tenoch e Julio acabam se beijando e participando do ato sem problemas. Esse clímax conjunto se torna mais dramático quando o espectador descobre mais tarde que Luisa morreu de câncer um mês depois do fim da viagem, e que Tenoch e Julio se afastaram definitivamente – o que reforça o lado machista e homofóbico dos dois, estabelecendo a viagem como um momento de libertação total, mas também de destruição e encerramento.


Voltando ao desenvolvimento do filme como road movie, é importante ressaltar que a viagem retratada acontece dentro de estradas mexicanas, envolvendo pessoas mexicanas e assim por diante (com a exceção, claro, de Luisa, que fica como turista). Esse enquadramento da cor local não se dá só através da figura de paisagens, mas principalmente através da figura de um narrador observador e onisciente. A forma mais evidente desse narrador se manifestar é através de voice-overs, que geralmente fornecem informações sobre o trio de protagonistas além das já vistas na tela, seja revelando o que eles estão pensando, dissecando seus contextos sociais e vivências ou reforçando suas ligações com personagens secundários, de uma forma que ao mesmo tempo aproxima o espectador dos personagens e o afasta deles – devido ao tom distante e ligeiramente irônico dos comentários. Mas os voice-overs mais preciosos são aqueles que enquadram os protagonistas e sua jornada dentro do México e de seu povo. Mas este não é um México estereotipado, até porque os clichês clássicos de cultura mexicana como mariachis e sombreros aparecem justamente em uma cena que se busca satirizar a superficialidade da alta sociedade mexicana. O México para o qual o narrador vai se voltar é o dos pobres, das pessoas de vida simples do interior afetadas pelo avanço da máquina do capitalismo, das vítimas de acidentes de trânsito evitáveis, de um grupo de porcos que escapam de um matadouro, e assim por diante, mostrando humanismo e até carinho por esse lado esquecido do México.

Visualmente, esta intenção do narrador é representada pelo trabalho do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, que já prevê a câmera em constante movimento de filmes que faria com Cuarón no futuro, como Gravidade (2013) e Filhos da Esperança (2006). O olho de Lubezki (ou do narrador do filme) permanece sempre inquieto, à procura de algumas dessas facetas do ignoradas do México, e são particularmente interessantes são os planos-sequência em que a câmera “esquece” os protagonistas e passa a observar esses mexicanos anônimos que estão a apenas alguns passos de distância dos personagens principais, mas que ficariam completamente fora de foco de acordo com o estilo de narrativa mais tradicional ou comum no cinema de ficção, mas que aproximam o filme de um estilo mais documental. A partir desses momentos, fica claro que a câmera-narrador segue sua própria viagem pelo México, livre para pegar curvas e procurar histórias dignas de serem contadas, nem que só por alguns segundos.



No fim das contas, essas buscas por liberdade e exploração sexual dos protagonistas e por um olhar mais atento a um lado esquecido do México do narrador se combinam e enriquecem umas às outras ao longo do filme. Assim, a jornada dos personagens acaba sendo também uma jornada de descobrimento deles mesmos dentro do México, e de aspectos ocultos deste país para o narrador (e consequentemente para o espectador). E o que é mais importante: com exceção dos membros da alta sociedade mexicana ironizados na cena do casamento, o filme não parece fazer nenhum tipo de julgamento. Dos porcos fujões à velhinha que dança cumbia, todos merecem atenção. Afinal, todos compartilham de estradas do mesmo México. 
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Paisagem Na Neblina (Theo Angelopoulos, 1988)

“Caro pai, como você está longe! Alexandros diz que no sonho dele você parecia estar muito perto... se ele esticasse sua mão ele teria te tocado...”. Este trecho, retirado de uma das cartas da menina Voula a seu pai, resume bem a essência de Paisagem Na Neblina (Theodoros Angelopoulos, 1988): a busca pelo contato com um pai ausente que parece ser eminente mas nunca acontecer de fato, dando a entender que ele parece ser mais possível no no plano da imaginação e dos sonhos dos protagonistas do que em um plano concreto, real.


Esta busca é estabelecida desde a primeira cena, na qual os irmãos Alexandros e Voula tentam pegar um trem para a Alemanha, onde (supostamente) se encontra o seu pai. As duas crianças moram com a mãe, mas parecem ter com ela uma relação distante, de pouco afeto. Na única cena em que ela está presente, surpreendendo os dois quando Voula contava uma história para que Alexandros dormisse, os dois não só fingem dormir e não estabelecem contato com ela (ela nem chega a aparecer no quadro) como Alexandros ainda reclama que ela sempre os interrompe quando Voula lhe conta essa história.

Assim, os dois personagens são estabelecidos como sendo desprovidos de raízes afetivas (com a mãe, com a casa, com sua cidade, enfim), o que lhes possibilita viajar em busca do pai que nunca viram como dois errantes, vagando pela Grécia sem saber direito para onde vão, aonde exatamente está seu pai ou como chegarão a seu destino. De certa forma, a própria câmera de Angelopoulos parece compartilhar da errância das duas crianças, vagando pelos lugares como se estivesse à procura de algo, sempre se movendo, revelando novas dimensões e personagens dentro do cenário em planos-sequência longos com complexas combinações de movimentos entre a câmera e os atores.


Ao invés da realização de suas fantasias infantis através de um rápido encontro com seu pai, o que Alexandros e Voula encontram em sua jornada é um mundo estranho e às vezes hostil, que eles se mostram muitas vezes incapazes de compreender. Esta incompreensão fica mais evidente quando Voula ouve seu tio dizer que nem a própria mãe dos dois sabe quem é o pai ou onde ele se encontra. Ao invés de desistirem, Voula e Alexandros continuam a viagem, sendo forçados a amadurecer dolorosamente através do encontro com a dúvida e o sofrimento – esse amadurecimento é particularmente cruel com Voula, que é estuprada por um caminhoneiro e se vê obrigada a se entender com sua própria sexualidade “na estrada”. Os dois ainda conseguem ter momentos de felicidade, mas eles parecem ilusórios: a entrada no trem, a fuga da delegacia, a apresentação do violinista no bar... todos esses instantes parecem, quase como mágica, alimentar a esperança dos irmãos e proporcionar-lhes uma espécie de transcendência fugaz de sua realidade, mas acabam se mostrando passageiros quando a brutalidade do mundo que os cerca retorna. Assim, cada vez mais a busca pelo pai parece depender mais da crença dos irmãos do que de algo tangível ou concreto, como se o pai ausente estivesse testando a fé das crianças – como quando Alexandros tenta enxergar uma árvore em um conjunto de fotogramas onde aparentemente só há neblina.

Na elaboração do roteiro do filme, Angelopoulos contou com a colaboração do grego Thanassis Valtinos e, principalmente, com o italiano Tonino Guerra. A parceria com Guerra é particularmente interessante pois o italiano também colaborou, entre vários outros, com o italiano Michelangelo Antonioni – em filmes como A Aventura (1960), O Eclipse (1963) e Deserto Vermelho (1964) e o russo Andrei Tarkovsky – em Nostalgia (1983) -, dois diretores que se mostram bastante influentes em Paisagem Na Neblina. Assim como Antonioni, Angelopoulos dá uma grande ênfase às paisagens em seus planos, procurando usá-las para retratar de alguma forma o estado de espírito dos personagens; foca sua narrativa em personagens crescentemente alienados em relação ao mundo que os cerca; e também se utiliza das tomadas longas para “desdramatizar” algumas cenas, filmando cenas de carga dramática forte até que a emoção dos atores pareça se esvair. E, como Tarkovsky, Angelopoulos constrói a jornada de seus personagens principais baseada na prova da fé em algo inatingível; e cria através do plano-sequência uma atmosfera de contemplação e meditação, numa estratégia que faz o espectador perder a noção de tempo e pode gerar uma sensação de hipnose (como na cena da dança na praia) ou tensão (como na cena do estupro). Também é possível estabelecer um paralelo com o diretor Robert Bresson, já que, assim como o francês no filme Um Condenado À Morte Escapou (1956), Angelopoulos repete um mesmo tema musical ao longo do filme, mas de forma fragmentada e passageira (assim como os momentos de alegria dos irmãos são passageiros), só usando-o em sua forma completa ao fim do filme. No caso do filme de Bresson, o tema musical serve para representar a liberdade do prisioneiro, que só é atingida ao final.


Mesmo com tantas comparações e similaridades com outros diretores podendo ser apontadas, Angelopoulos demonstra um talento particular para produzir imagens que encantam o espectador com uma beleza melancólica mas ao mesmo tempo tocante, sendo difíceis de serem descritas ou “entendidas” objetivamente mas capazes de levar o espectador a uma espécie de transcendência que o diretor tanto procura – como na cena em que a mão de uma estátua é levantada do mar, ou na morte do cavalo. Ao final do filme, essa transcendência ou felicidade que atinge os irmãos pode até ser passageira ou ilusória, mas não há como negar que a fé na obtenção desta transcendência tenha unido os dois, e se provado preciosa para suas jornadas pessoais, que se tornaram mais belas graças a esses momentos fugazes. 
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29 de maio de 2015

Slacker (Richard Linklater, 1991)

Assim como Estranhos No Paraíso (Jim Jarmusch, 1984) fez alguns anos antes, Slacker (Richard Linklater, 1991) parece soar como um ressonante “Yes, we can” para o que se convencionou chamar de cinema independente americano através da realização de um único diretor. Slacker é um filme que transmite a cada plano uma sensação de liberdade, juventude, talvez até imaturidade.


Até porque é difícil enxergar de outra forma algumas “complicações” técnicas do filme como microfone aparecendo, dublagens mal mixadas ou sincronizadas, movimentos de câmera chamativos – típico de diretor que está começando e quer mostrar serviço. No entanto, é até estranho colocar esses detalhes como erros, porque o filme não parece preocupado com a possibilidade de parecer amador, considerando a quantidade de cenas filmadas com câmeras típicas de filmes amadores, com imagens de qualidade baixa e reminiscentes de filmes em Super 8 (só para citar um tipo de tecnologia mais conhecida). Aliás, colocar essas complicações como errados soa até errado. Para Linklater, estas limitações são oportunidades para demonstrar as formas que os jovens do filme têm de exercer sua liberdade e se expressar de formas não abraçadas pelos padrões da sociedade em que vivem - se mesmo assim você ver estas coisas como erros, basta lembrar que o filme foi realizado com um orçamento de aproximadamente 23 mil dólares para pelo menos tornar as complicações “compreensíveis”.

Até por uma questão de lógica, o monólogo do personagem interpretado pelo próprio Linklater logo no início do filme acaba ditando o tom e o ritmo de todo o filme, com ele falando com um taxista sobre as infinitas realidades criadas a partir de cada escolha que tomamos, o poder da possibilidade e outras viagens semelhantes. A partir daí, o que se segue é uma série de vinhetas curtas com os mais variados tipos de pessoas aleatórias, entre desocupados, loucos, solitários, obcecados por teoria da conspiração, pretensos artistas, velhinhos solitárias, gurus, roqueiros frustrados e garotas independentes, falando sobre os assuntos mais variados e aleatórios de forma descompromissada e verborrágica, parecendo que passaram toda a sua vida refletindo e formando seus devaneios e teorias loucas sobre a sociedade moderna, daquele jeito despretensioso mas envolvente que é marca dos filmes de Linklater, de Boyhood (2014) a Antes do Amanhecer (1995).


A câmera segue essas pessoas obsessivamente, escolhendo entre qual pessoa seguir (já que os diálogos sempre terminam com as pessoas se separando ou uma pessoa tomando outro rumo e encontrando outras pessoas) como se tentasse descobrir por conta própria todas as possibilidades de realidade que existem depois de ouvir o monólogo do início. As transições entre essas vinhetas variam entre um movimento lateral de câmera simples e suave e algumas mudanças de perspectiva meio desajeitadas, mas geralmente parecem fluidos, como que pertencentes a um observador curioso passando pela rua. De qualquer modo, o mais importante para essas transições não é uma demonstração de ou qualquer tipo de elaboração complexa, e sim a tentativa de fazer os espectadores entrarem no espírito da coisa e passarem a torcer para a câmera acompanhar um determinado personagem em detrimento de outro após um diálogo.

Por mais que tentem colocar este filme como algum tipo de representante de determinada geração de jovens americanos (mais especificamente a geração dos anos 1990), Slacker me parece mais uma busca (e os próprios movimentos da câmera reforçam esta ideia de procura) por dar voz às pessoas às margens da sociedade capitalista americana da época (algumas por escolha, outros por imposição) e fora do esquema de “consuma-trabalhe-case-tenha-filhos-durma-não questione autoridade”. Claro, não há como negar que o filme se concentre em jovens ou que pareça jovial, mas aqui a juventude aparece mais como um estado de espírito do que propriamente como idade, considerando que alguns dos personagens mostrados são idosos e parecem tão deslocados da sociedade e tão cheios de ideias loucas na cabeça quantos os jovens.


E, ao fazer isso, o filme de Linklater já mostra aquela que talvez seja a principal e mais importante característica dos filmes do diretor: sua empatia, sua atenção ao ouvir o que as pessoas têm a dizer, e sua crença no quanto deixar elas botarem seus devaneios para fora é importante. De quebra, ao utilizar esta abordagem em pessoas aleatórias nas ruas enquanto nega a existência de personagens principais, Linklater mostra, justamente através do caráter errático e irregular do filme, a imensidão de possibilidades que se abrem quando se tenta conhecer ou iniciar um diálogo com pessoas aleatórias que passam despercebidas pelas nossas vidas, e as coisas preciosas que podem surgir a partir disso. 
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Os Amantes (Louis Malle, 1958)

Em Os Amantes (1958), o diretor francês Louis Malle se propõe a construir este filme sob a visão e perspectiva de sua protagonista, Jeanne, interpretada pela atriz Jeanne Moreau. Ok, até aí tudo bem. Na prática, isso significa que Malle se atém à visão de uma personagem incuravelmente sonhadora, que busca fugir de um casamento falido com um marido desprovido de afeto através dos encantos de seu amante espanhol e dos luxos supérfluos da alta sociedade parisiense. Ok.


O problema é que, através desta proposta, o diretor parece absolutamente confortável em reproduzir sem praticamente nenhum indício de crítica uma visão ultrapassada da sexualidade feminina que podia parecer transgressora e chocante em Madame Bovary (livro de Gustave Flaubert de 1857) pelo simples fato de abordar o adultério de uma mulher através da perspectiva dela, mas que me parece completamente datada e retrógrada em 1958, e ainda mais em 2015. Para ficar no campo da literatura, Anna Karenina, de Liev Tolstói, lançado apenas 20 anos depois de Madame Bovary e aproximadamente 80 anos antes de Os Amantes, também trata da história de uma mulher que abandona sua família e sua vida social repleta de riquezas para tentar uma vida ao lado de seu amante, apenas para ver esse sonho ruir pouco depois. O final de Anna Karenina é muito mais trágico que o de Os Amantes, ok, mas o livro de Tolstói me parece muito mais justo com sua personagem principal, explorando incansavelmente seus conflitos internos e devaneios de uma forma que transparece empatia e até afeto, sem uma perspectiva machista (pelo menos não que eu me lembre). Meu Deus, basta lembrar de Mônica e o Desejo (Ingmar Bergman, 1953) e ...E Deus Criou A Mulher (Roger Vadim, 1956), dois filmes que vieram antes de Os Amantes e parecem muito mais justos e libertários que Os Amantes em seu tratamento da sexualidade feminina, principalmente o filme de Bergman.

Aliás, Jeanne sofre do que eu chamaria de “síndrome de Madame Bovary”, sendo uma mulher que, seduzidas por promessas de um grande amor vindas de seu amante charmoso, só consegue se sentir plenamente feliz quando está ao lado de um homem (ou, na prática, subordinada a ele), como se sua felicidade fosse pra sempre atrelada ao homem. No filme, isto é reiterado a um nível quase ridículo, com Jeanne não se mostrando capaz de escolher um vestido por conta própria sem parar para pedir a aprovação do marido.


Assim, o diretor desenvolve sua narrativa com poucos insights sobre os sentimentos conflituosos e complexos de Jeanne, e critica sua situação com ainda menos empenho. A própria forma de apresentar esses insights já parece preguiçosa e equivocada, com voiceovers gravados pela própria Jeanne Moreau falando da personagem no passado, de um jeito que praticamente não demonstra qualquer tipo de reflexão posterior sobre os acontecimentos e soa até falsa, assim como é o estilo de atuação over de praticamente todos os atores do filme. Algumas exceções até aparecem em certos momentos, como quando Jeanne se mostra duvidosa sobre suas ações (principalmente no fim do filme), mas ainda assim de uma forma que parece falsa e vazia.

No fundo, esta deficiência também acaba demonstrando uma incapacidade do diretor de tornar os personagens mais profundos e surpreendentes e menos estáticos que atinge todos os cinco personagens principais. Jeanne é a que mais escapa disso, até pela atenção dada a ela (até por causa da devoção que o diretor sentia pela atriz, visível em cada close-up e que às vezes parece vinda da perspectiva de um mortal observando uma deusa), mas é difícil dar crédito quando seu momento de suposta libertação (quando ela escapa de sua própria casa e do relacionamento com o marido) não é nada mais do que uma nova submissão, composto por declarações de amor recheadas de clichês e que passam longe de convencer, umas músicas de Brahms para dar um ar de sofisticação e alta arte ao filme e uma direção de fotografia que tenta ser tão pretensiosamente bela e brilhante (literalmente) que acaba beirando o ridículo.


Claro, não se pode culpar Jeanne Moreau por isso, considerando que seu rosto exprime muito mais complexidade e honestidade que os diálogos ou voiceovers ou qualquer coisa escrita no roteiro. No fim das contas, ela tenta fazer bem o que lhe é exigido. No entanto, não deixa de ser impressionante (e reconfortante) o quanto ela parece melhor e mais convincente alguns anos depois em Jules e Jim (François Truffaut, 1962), onde interpreta uma mulher que abraça sua singeleza e autonomia e se vê livre da tal “síndrome de Madame Bovary”. 
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27 de abril de 2015

Vício Inerente (Paul Thomas Anderson, 2014)

O que mais salta os olhos logo no início de Vício Inerente é o fato do novo filme de Paul Thomas Anderson parece ter saído direto de uma fantasia febril de um hippie decadente do início da década de 1970 (depois de Charles Manson ter manchado o sonho da geração Flower Power com violência e loucura em 1969). Todos os sinais clássicos de paranoia (da geração) hippie estão lá: os vilões que matam com overdoses de heroína como no clássico do blaxploitation Coffy (Jack Hill, 1973), os próprios traficantes de heroína colocados como pessoas “do mal”, os negros militantes do Partido dos Panteras Negras ou de algum outro movimento de nacionalismo negro, os policiais (brancos) corruptos, a sensação de que o governo ou o FBI estão perseguindo as pessoas erradas, os Hell’s Angels porraloucas e violentos, a desconfiança em relação a Hollywood, expressões como “groovy” e “far-out”, a busca por uma garota “with love in her eyes and flowers in her hair” (como diria Robert Plant), e por aí vai. A presença de todos esses elementos podia significar que o filme repete ou se conforma a clichês e lugares-comuns sobre a geração hippie (ou a ideias sobre a geração hippie), mas PTA os utiliza para lançar sobre eles um olhar irônico, conseguindo toma-los para si e subverte-los de uma forma que faz o “universo” do filme parecer familiar, mas ao mesmo tempo distorcido sob uma nuvem de fumaça e um senso sarcástico de insanidade que o tornam surpreendente.


De qualquer forma, aderir a esses checkpoints hippies justifica-se também pela maneira com que o filme procura expressar e explorar a visão de mundo de seu personagem principal, Larry “Doc” Sportello, que é justamente um hippie paranoico e decadente que exerce seu senso torto de moral e justiça ganhando uns trocados como detetive particular. Em sua busca por resolver o caso do desaparecimento de sua ex, Shasta, que sumiu junto com o bilionário dos imóveis Michael Wolfmann, Doc se envolve com praticamente todos os tipos de personagens citados anteriormente (entre outros, claro), combinados de forma surreal (ou “psicodélica”, se preferir). A insanidade desses encontros transmite bem um estado de paranoia e percepção alterada que parece afetar o personagem principal cada vez mais ao longo do filme – numa combinação entre a figura do detetive que vai ficando mais confuso conforme o caso que ele está investigando vai se revelando cada vez mais sem sentido (bastante comum entre os filmes noir, por exemplo) e a figura do viciado que parece cada vez mais desconectado da realidade por causa das drogas.


A evidência mais forte de que essa estratégia de PTA funciona é o fato de que muitas vezes os próprios espectadores entram na sensação de paranoia, não tendo certeza se o que veem é real ou um produto da paranoia de Doc. Apesar dessa incorporação da visão de Doc, dificilmente nos é revelado o que Doc realmente pensa ou suas reais motivações, até porque ele se mantém como um herói observador ou testemunha mais do que como um agente dos acontecimentos por boa parte da narrativa. Em várias cenas, estas revelações sobre as motivações de Doc acabam ficando para as narrações em off faladas por sua amiga Sortilège, que geralmente parece ser mais outro produto da paranoia/viagem de Doc do que uma pessoa real.


O que permanece constante ao longo do filme é a tentativa de Doc de estabelecer certa harmonia (mesmo que apenas aparente) em sua vida ou retornar para um momento no passado em que ele era feliz (ou seja, quando ele estava morando com Shasta, época que é relembrada através de vários flashbacks ao longo do filme), assim como os protagonistas dos dois últimos filmes de PTA, Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012). E, como nesses filmes, no fim das contas essa harmonia se mostra inatingível ou ilusória. No final, Doc até se reúne com Shasta, mas a cena dá a entender que aquela é outra de suas viagens, já que as janelas do carro estão tão embaçadas que a cena parece ter sido tirada de um sonho. Além das semelhanças com os dois filmes citados, mais meditativos e sóbrios, Vício Inerente marca também um certo retorno ao PTA de Boogie Nights (1997), não só por voltar a retratar os anos 1970 mas também pelo tom mais bem-humorado, marcado por uma ironia baseada no exagero e na caricatura (como na cena em que um exército de policiais cerca a cabana de “pussy-eating”, ou quando o detetive Big Foot come uma porção enorme de maconha). Nesse quesito, o filme também se aproxima de filmes de drugsploitation do fim dos anos 60 e começo dos anos 70 como The Trip (Roger Corman, 1967).


Vício Inerente também mostra PTA como um diretor de certa forma confortável, não tão angustiado em desenvolver e expressar uma estética própria como nos dois filmes anteriores, ou em combinar as ações dramáticas dos personagens e/ou acontecimentos da narrativa em um clímax megalomaníaco e grandioso como em Boogie Nights e Magnólia (1999). Não que ele tenha abandonado seu estilo próprio, digamos assim, já que algumas de suas marcas registradas são bem utilizadas como o uso de trilha sonora para expressar as emoções dos personagens e administrar a tensão, ou o uso de tomadas longas com pouca ou nenhuma movimentação de câmera em diálogos-chave de um modo que reforça a interpretação dos atores e desestabiliza a percepção de tempo (como na cena em que Shasta retorna do sumiço e seduz Doc). Mas não é para menos que este parece ser seu filme recente com mais “fidelidade” a um texto/roteiro já pronto (no caso, o livro Inherent Vice, de Thomas Pynchon), até pelo aparente aumento na quantidade (ou dependência) de diálogos entre os mais recentes do diretor, parecendo menos contemplativo ou focado em composições arrebatadoras e ambiências ou “moods” do que O Mestre e Sangue Negro.



Na prática, essa posição “intermediária” do filme não o torna mais interessante ou envolvente por si só, mas mostra um diretor que, mesmo numa posição de relativo conforto, ainda parece inquieto com sua estética e é capaz de produzir um filme bastante divertido e intrigante, principalmente em sua tentativa de incorporar a visão de seu protagonista e assim não só proporcionar mais uma interpretação maravilhosa do ator Joaquin Phoenix como uma narrativa que mantém os espectadores intrigados e em dúvida até o final, uma dúvida que não é causada por acontecimentos que aparentam ter mensagens escondidas ou significados sérios a serem refletidos ou explicados e assim por diante como filmes anteriores do diretor. Pelo contrário. PTA parece largar um pouco essa seriedade e essa megalomania – que não são inteiramente positivas – e relaxar, abraçando o espírito da geração hippie, mas não sem deixar de olhá-lo com uma distância irônica dada pela própria passagem do tempo – motivada principalmente por certo senso de fracasso e falta de direção que permeiam esse contexto sociocultural quando se analisam seus frutos. 
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11 de março de 2015

A História da Eternidade (Camilo Cavalcante, 2014)

Fui ver A História da Eternidade (Camilo Cavalcante, 2014) sem muitas expectativas, depois de ter ouvido alguns comentários bons e outros ruins sobre o filme, mas nada de mais. Quanto ao gênero, eu esperava um drama (na verdade eu esperava algo bem dramático), baseado no que vi no trailer. Ok. Sendo assim, me surpreendi quando comecei a ouvir algumas risadas nervosas e debochadas vindas de alguns cantos do cinema, causadas por alguma coisa banal que algum personagem disse de maneira bem séria. Pensei algo como “ah, não, peguei uma plateia besta na Fundaj de novo” nas primeiras vezes em que isto aconteceu, mas depois de um tempo eu comecei a tentar ver motivos no próprio filme pra essas risadas. Podiam ser as atuações, que às vezes pareciam um pouco caricatas demais, ou exageradas demais. Não sabia dizer com certeza.


Depois é que fui notar que realmente era difícil não rir quando um personagem de sotaque paulistano absolutamente caricato e falso, depois de tentar dizer o máximo de gírias paulistanas que é possível se dizer em dez segundos, exclama “o que é isso mesmo, vó?”, ao que ela responde “jerimum”, do jeito mais “vovozinha servil e amável” que se pode imaginar. Nesse momento é que eu fui entender o problema. Aquela era a risada da pessoa da cidade grande que vê a pessoa do interior (do Nordeste, pra ser mais específico) com uma lupa ou microscópio – mantendo uma distância segura sempre – e aponta pra ela rindo sempre que ela faz alguma coisa de “matuto” (ou seja lá qual for o apelido de sua preferência). O tipo de pensamento que gera esta risada característica está enraizada em uma cultura que, talvez numa tentativa de exprimir alguma espécie de cor local, frequentemente olha as pessoas do interior sob uma perspectiva de superioridade, retratando elas e seus hábitos culturais de uma forma que os diminui e os ridiculariza através da caricatura e da zombaria.

E esta abordagem do interior está profundamente presente em A História da Eternidade. Perceba como vários dos estereótipos mais comuns relacionados às pessoas do interior estão presentes no filme e distribuídos entre seus personagens: temos o patriarca-coronel machista que fala alto e grosso mas que é tão bruto que não consegue expressar emoções positivas ou ternas (Nataniel), a velhinha fervorosamente católica que vê toda expressão de sexualidade de sua parte como pecaminosa e passível de punição após a morte de seu marido (Dona das Dores), a adolescente angelical e inocente que anseia em ver o mar e por trás do jeito recatado esconde um desejo sexual proibido e incontrolável (Alfonsina), e por aí vai. Ah, e todos eles têm nomes incomuns e “feios”, claro. E gostam de um forrozinho. E vivem na seca.


Enquanto isso, os dois personagens vindos da cidade grande ou que tiveram algum contato duradouro com ela (João e Geraldo) apresentam um jeito mais “civilizado” e meio descolado ou artístico - como queira -, fazendo os interioranos parecerem menos civilizados e mais arcaicos e ignorantes em contraste, e geram nos habitantes da pequena cidade sentimentos libertadores e positivos, de certa forma. No entanto, ao fim eles acabam morrendo, como se fosse impossível para eles sobreviver naquele ambiente – quase – inóspito, que realmente não é seu lugar.

Camilo Cavalcante tenta pontuar essas relações com momentos de beleza sublime e edificante, nem que para isto ele tenha que imitar Rashomon (Akira Kurosawa, 1950), As Harmonias de Werckmeister (Béla Tarr, 2001) – diversas vezes -, Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2001) – não só pela narrativa que aborda as consequências do cerceamento da liberdade de expressão ou sexual do patriarcado, mas também pela própria figura do irmão bastardo, epiléptico e incestuoso, que eu achei que já tinha se esgotado com ele -, entre outros. Em alguns momentos, esses momentos conseguem realmente transmitir os sonhos e desejos dos personagens de forma poética e transmitir uma experiência quase transcendental dos personagens, em especial na “ida” de Alfonsina ao mar e na performance de João ao som de ‘Fala’, da Secos & Molhados. Em outros, o embelezamento me parece forçado e meio falso, como na cena em que Dona das Dores observa seu neto comer com uma iluminação que parece tentar ser mais barroca e dramática que um quadro de Caravaggio, ou no plano-sequência do final, com a chuva falsa que cessa – obviamente e bruscamente demais – depois do momento de maior drama e os gritos gravados na pós-produção em estúdio.


O que se mantém mais regularmente satisfatória é a trilha sonora de Zbiginiew Preisner – principalmente nas partes com sanfona -, apesar de ser usado um pouco demais. E o trabalho da maioria dos atores, que se mantém geralmente empenhados e com performances fortes – apesar do roteiro que não os deixa escapar dos vícios de “cor local” já citados -, especialmente Irandhir Santos.

Mas é difícil virar os olhos para os problemas de um filme cuja narrativa não só é movida e impulsionada pelas diferenças entre os personagens do interior e os da cidade, como parece reforçar ou manter estas diferenças fora das telas também, mesmo que sem absoluta intenção, afinal isto é discutível e eu não posso afirmar tal coisa com certeza. Mas não consigo não pensar que, enquanto algumas pessoas sairão do filme achando terem se divertido por terem visto algo belo e sublime e transcendental e etc, outras podem se lembrar do quanto se divertiram apontando o dedo para a tela e pensando/falando: “olha só, que engraçado, eles falam ‘carcará’ e ‘presepada’ e só comem jerimum e carne de sol!”; ou “tá vendo que esse pessoal do interior é estranho? eles transam com os parentes [e com bichos, afinal só faltou essa]!”. Ou talvez alguém se divirta por ambas as razões, e aí é que está o problema. 
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3 de março de 2015

Sniper Americano (Clint Eastwood, 2014)

Não é muito difícil supor o porquê de Clint Eastwood ter se encantado com a história de Chris Pyle a ponto de produzir este filme. Afinal de contas, Pyle se tornou um herói de guerra americano fazendo na vida real o que Clint fez durante grande parte de sua carreira no cinema: atirando e matando friamente os “selvagens”, caras maus, bandidos ou o que quer que seja que ousam levantar a mão contra a bandeira americana, sua moral e seus bons cidadãos. O porquê do diretor retratar esta história apresentando tão pouco senso crítico e tanta glorificação do herói de guerra é que é surpreendente e decepcionante.


O engraçado é que Clint acaba fazendo de Pyle um clichê de herói de guerra tão grande que ele praticamente nos ensina como fazer um herói de guerra. Primeiro é preciso iniciar o treinamento na infância, claro. Nesta fase, uma cultura armamentista nutrida ao longo de séculos e séculos faz um pai levar o filho até a floresta para matar um animal selvagem por puro prazer, como se esta fosse uma das lições mais importantes do mundo. Ok. Depois o pai ensina uma lição ainda mais valiosa: está tudo bem se você quiser agredir uma pessoa brutalmente, contanto que você tenha certeza que ela é um lobo (do mal) que está agredindo seus colegas/parceiros/irmãos, e contanto que você não seja o que mais apanha no fim das contas. Ok. Ah, não se pode esquecer de passar na Igreja e pegar (ou roubar) uma cópia de bolso da Bíblia, afinal não há como ser um bom texano sem ser temente a Deus.

Até aí já foi formada uma boa base para ser um grande matador, mas antes disso é preciso que Pyle se torne um homem. Ou melhor, um caubói - afinal ele é texano –, daqueles que gostam de montar em cavalos (mesmo que para que isso seja bem demonstrado sejam necessários efeitos especiais), ouvir música country (clichê terrível) e ostentar seus cinturões para poder comer mais mulheres, certo? Afinal de contas um caubói precisa de uma mulher, mas se ela o trair com outro caubói não tem problema, já que você nunca a amou (não me faça dizer que “um homem não chora”, Clint) e você conseguiu dar uma de macho alfa da casa e bater no cara que não tinha nada a ver com a história (pelo menos ele era um caubói que valorizava seu chapéu).

Mas temos aí um problema, já que um herói de guerra precisa ser também um homem de família. Problema resolvido assim que surge Kaya, uma mulher que não pode beber sozinha em um bar sem precisar ser resgatada das garras de aproveitadores pelo salvador Pyle, e é tão donzela indefesa que até passa mal depois de algumas doses, já que não tem bolas suficientes para ficar completamente sóbria e impassível como Pyle. Ok. Agora Pyle precisa conquistar Kaya, coisa que ele faz sem esforço mesmo com ela sabendo que é uma péssima ideia namorar um fuzileiro, já que ele é um macho alfa e as fêmeas não resistem a isso por muito tempo. Não sem algumas cenas com o uso clássico (porém completamente desnecessário) do bom e velho “pianinho” e de declarações de amor que soam falsas, claro. Enfim, sendo uma boa fêmea, Kaya rapidamente cumpre uma de suas principais funções (na verdade, uma de suas duas funções) dentro da família W.A.S.P. que forma com Pyle e dentro do filme: gerar filhos e filhas (mas primeiro um filho primogênito, claro). Sua outra função dentro do filme (já que nenhuma referência é feita a um possível emprego, pelo que me lembre) é reclamar incessantemente sobre a presença de Pyle no Iraque, nem que para isto ela tenha sua atuação reduzida a chorar em praticamente todas as cenas. No entanto, isto não a torna forte o suficiente para dizer qualquer coisa que seja quando Pyle diz que seu colega de exército morreu “por causa de uma carta”, ou “porque desistiu”. Ou para não abandonar suas intenções de se divorciar depois de ouvir um simples “venha cá” do marido. Ou de demorar mais do que (aparentemente) alguns meses para dizer que está orgulhosa dele e que ele é um ótimo pai (depois de passar o filme inteiro dizendo o contrário). Enfim.

Com a família protegida pela mãe em casa, Pyle pode agora ir para a guerra (não sem que antes a montagem sugira ridiculamente que o envolvimento – principalmente sexual – dele com Kaya comprometeu seu desempenho nos treinamentos, afinal é impossível que a mulher não prejudique o homem de alguma forma). Ah, sim, o treinamento. É bom notar que aqui Eastwood começa a esboçar algum tipo de crítica ao mostrar o quanto os métodos de treinamento ao estilo “testosterona máxima” e “this... is... Sparta!” acabam brutalizando e desumanizando os soldados. No entanto, o treinamento acaba passando brevemente, e as cenas de Nascido Para Matar (Stanley Kubrick, 1987) que vêm à cabeça assim que começam os gritos e xingamentos dos instrutores servem para torná-lo até brando e leve em comparação.


Ok, chegamos na guerra, onde aparentemente os soldados patriotas (em especial Pyle) acreditam que ao matar iraquianos e destruir suas cidades eles estão combatendo os terroristas e impedindo-os de atacar o solo americano outra vez. Ok. Desta forma, o americano que mata mais terroristas é condecorado como herói. Sendo assim, Pyle logo se torna uma “Lenda”, o que Clint reforça ao mostrá-lo cumprindo seu trabalho e salvando os indefesos soldados americanos dos terroristas iraquianos (a maior parte deles aparentando ser louca ou despreparada). Certo. Mas como todo herói precisa de um vilão, eis que aparece Mustafa, o sniper iraquiano (na verdade ele é sírio) que “ganhou medalha nas Olimpíadas” por suas habilidades como atirador, que ele usa para matar os tais soldados americanos. E é na caracterização de Mustafa que a narrativa fica mais fortemente maniqueísta. Enquanto Pyle larga sua função de sniper para corajosamente ajudar os soldados a invadir as casas dos iraquianos mais de perto (e assim protegê-los melhor, supostamente), Mustafa não só nunca deixa de ser um sniper como não se importa em matar americanos que estão de costas e/ou fora de combate (aqueles construindo o muro). Enquanto Pyle se mostra geralmente humilde e não alimenta muito as gozações/elogios quando lhe chamam de “Lenda” ou herói, Mustafa divulga vídeos dele mesmo matando soldados americanos. Como se isso não fosse o suficiente, uma música sombria digna de vilão de filme de super-herói toca em algumas das cenas em que Mustafa se prepara para sair à caça, e ele chega até a lamber os beiços (ou coisa parecida) após uma das mortes, como se tivesse um prazer (quase sexual) com aquilo. No caso, o perverso aqui me parece ser o diretor por se submeter a tal nível de maniqueísmo, e não o clichê de terrorista muçulmano maléfico. A coisa chega a seu ápice no momento em que Pyle finalmente mata Mustafa, quando Eastwood consegue reviver o “bullet time” (que eu achava que já tinha sido ultrapassado depois de ser usado em todos os filmes de ação desde Matrix) para dramatizar e intensificar o efeito da morte do sniper terrível matador de americanos como se esta fosse uma vitória gloriosa (é uma vitória para Pyle, com certeza, significando o cumprimento de sua missão no Iraque, mas reproduzir este pensamento desta forma é, no mínimo, irresponsável).

Não que eu ache absolutamente impossível elogiar o filme. Algumas das cenas de Pyle sendo levado a dilemas morais em sua função de sniper são realmente poderosas, em especial as que envolvem crianças como alvo, principalmente por causa da entrega do ator Bradley Cooper. Além delas, o momento em que Pyle retorna para casa depois de desistir da guerra me parece ser o ponto alto do filme, quando sua paranoia causada pela guerra é explorada com mais cuidado. Bons exemplos disso são a cena em que Pyle pensa estar sendo seguido por carros comuns nos Estados Unidos, quando se assusta ao ouvir o som máquinas inofensivas como um liquidificador (ou coisa parecida), ou quando ele encara uma televisão desligada e só consegue enxergar tiros e bombas (momento em que a crítica de Eastwood soa mais forte). No entanto, Eastwood explora esta paranoia só até certo ponto, já que, depois de uma única consulta no psicólogo, Pyle passa a conviver com veteranos de guerra e aparentemente se cura. É tanto que Pyle não vê problema nenhum em levar seu próprio filho para caçar, reproduzindo o sistema que ensina as crianças a matarem desde pequenas sem aparentar nenhum remorso ou trauma. E aparentemente o problema não era a culpa pelo assassinato de centenas de iraquianos, mas sim por não ter salvado mais americanos (através de mais mortes de “selvagens”, obviamente).

De qualquer forma, é difícil considerar que estes bons momentos esporádicos “salvam” o filme. Afinal de contas, estamos em 2015. Eu sinceramente gostaria que a esta altura do campeonato os americanos já tivessem superado sua mania de filmes de guerra recheados de terroristas muçulmanos perversos, de violência desnecessária e sem questionamento, de machões balançando sua testosterona pra lá e pra cá, de heróis de guerra sendo glorificados pela sua bravura, de um patriotismo cego, e assim por diante. No fim das contas, a mensagem parece ser que a guerra pode lhe matar e lhe deixar louco, mas mate centenas de terroristas selvagens nela e tudo ficará mais fácil. E você será um herói. E americanos amam heróis, como nós todos sabemos (e vemos no epílogo do filme, que chega a ser de uma grandiosidade vergonhosa). 
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24 de novembro de 2014

Interstellar (Christopher Nolan, 2014)

Se Christopher Nolan pode fazer referência à parábola de Lázaro para ilustrar sua história, permita-me então dizer que o diretor mais parece encarnar o personagem Ícaro em seu novo filme. Ok, ele abusa menos dos clímaces superdilatados de meia hora com a ação dividida em diversas localidades do que em outros filmes, mas ele nunca tinha feito um filme tão longo, com tantas estrelas, tantos efeitos especiais, numa escala tão grande ou com tantos detalhezinhos e problemas para o protagonista. Para não sair do campo das mitologias, a jornada do piloto/fazendeiro Coop pode ser comparada também à de Ulisses na Odisseia, que, assim como todos os outros protagonistas dos últimos filmes de Nolan, enfrentam mil tormentos para reestabelecer o contato com suas famílias e retornar a uma ideia de lar ou casa que já se perdeu. Enfim, nada muito diferente de tantas e tantas jornadas de heróis ao longos dos séculos.


Mas não é pela falta de originalidade que Nolan parece Ícaro, e sim pela megalomania, pelos excessos, pela artificialidade e superficialidade. Mais uma vez, Nolan (e seu irmão) enchem o roteiro de informações desnecessárias e conflitos que vêm a ser resolvidos ou contornados até com certa facilidade, o que faz eles parecerem até evitáveis, principalmente quando levam o filme a tropeçar em seus próprios critérios de verossimilhança. Isso revela um diálogo verborrágico, excessivamente preocupado em criar um turbilhão de informações num esquema que mais parece um quebra-cabeça que dá ao espectador uma sensação “overwhelming”, de confusão, que pode acabar sendo confundida com complexidade, profundidade ou “viagem”. Como consequência, os diálogos frequentemente parecem carregados, mecânicos, desprovidos de senso de improviso ou informalidade, e com personagens que parecem se expor demais, tentando colocar para fora seus sentimentos e ideias mas parecendo estarem mais elaborando em cima dos “temas” do filme. Que são muitos, diga-se de passagem, passando desde a falta de cuidado dos seres humanos com os recursos naturais da Terra até corrida espacial, relação entre pais e filhos, teoria da relatividade, conflito entre razão e emoção, possibilidade de vida inteligente em outros planetas e desespero diante do apocalipse, só para citar alguns. Porém, como já foi citado, o estilo verborrágico e excessivo do roteiro acaba tornando a abordagem desses temas, em sua maioria, superficial, com uma história que parece querer abarcar coisas demais.

O roteiro megalomaníaco também acaba prejudicando vários personagens, que parecem mal construídos ao não mostrarem coerência própria ou motivações convincentes. É o caso da Dra. Brand, uma das personagens mais importantes da história, que tem um caso de amor mal resolvido com o tal Dr. Edmunds. A relação de amor dos dois é mencionada várias vezes, mas sempre com pressa, sem nunca chegar a convencer. Brand até o usa como justifica para um discurso bastante piegas e que soa totalmente fora de lugar sobre o poder do amor, mas isso não muda muita coisa. Outro personagem mal construído é o filho de Cooper, Tom, principalmente em sua fase adulta, quando é interpretado por Casey Affleck. Sua passagem de filho fiel e dedicado a filho convencido a esquecer o pai é rápida demais para ser convincente, apesar de gradual, e sua agressividade em relação à irmã carece de motivação ou justificativa suficiente – a morte de um seus filhos é mencionada, mas como algo jogado e mal explorado -, parecendo servir mais como auxílio na construção do clímax do que qualquer outra coisa. Ao final, sua morte nem é mencionada. O cientista interpretado por Matt Damon, Dr. Mann, também parece carecer de evidências ou motivações que esclareçam suas ações, de tal modo que até o competente Matt Damon parece perdido, parecendo são demais para ser louco e desnorteado demais para alguém tão racional, por assim dizer. Já o primeiro astronauta a morrer, Doyle, é tratado com tão pouca importância que nem lembramos mais seu nome em cinco minutos após sua morte, que acontece numa cena confusa que é concluída com um plano quase desrespeitoso de tão frio.


Mesmo mal construídos, todos (ou quase todos) esses personagens contribuem, em níveis diferentes, para a construção dos momentos e cenas de melodrama do filme, que marcam a narrativa mais do que em qualquer outro filme de Nolan. O diretor explora incansavelmente as idas e vindas da relação entre Cooper e sua filha, Murph, explorando a carga dramática da separação dos dois e não se contendo em transformar o filme em uma jornada do pai em busca de salvar e rever a filha. Hans Zimmer pontua os momentos mais críticos e emotivos dos dois com uma trilha sonora típica de melodrama, sentimental, apelativa, cheia daquele pianinho ao melhor estilo “chore mais”. Ao seguir esse caminho (mais fácil), Nolan acaba até tirando parte do foco nas atuações de seus próprios atores. Até porque Jessica Chastain e Matthew McConaughey estão (e são) ótimos, e não precisam desse tipo de coisa (ou pelo menos não tanto assim) para cativar o público.

O melodrama pode ser novidade, mas a elaboração de sequências climáticas com dezenas de minutos de duração ancoradas em montagem paralela não podia ficar de fora, seguindo firme e forte. No entanto, apesar das cenas de clímax parecerem menos megalomaníacas em Insterstellar, por pelo menos durar menos e intercalar menos espaços do que em filmes como A Origem (2010) e The Dark Knight Rises (2012), isto não as torna melhor executadas. Para funcionar bem, este esquema precisa de ações em espaços diferentes mas em níveis de ritmos similares, mas não é o que ocorre aqui. Enquanto Cooper tenta aprender a manipular a gravidade no espaço gerado dentro do buraco negro por “eles”, Murph quebra a cabeça para entender como captar os sinais do pai para entender a mesma gravidade em seu quarto. Até aí tudo bem, mas enquanto as seções de Cooper geram fascínio e tensão quase naturalmente pelo caráter inusitado (ou espetacular) do cenário e pela boa interpretação de McDonaughey, a tensão das partes de Murph é gerada pela possibilidade do irmão voltar logo para casa e cometer alguma violência contra ela. No entanto, como já foi colocado, essa possibilidade é mal construída, e acaba se desconcretizando de forma embaraçosa. Sem falar que a quantidade de ações propriamente ditas que os dois realizam é bastante diferente, já que Murph, na grande maioria da cena, apenas... quebra a cabeça, ou seja, pensa, quase parada.


Outra coisa que Nolan não podia passar sem são as comparações com outros filmes (melhores) sobre viagem espacial, em especial 2001: Uma Odisseia No Espaço (Stanley Kubrick, 1968) e Solaris (Andrei Tarkovsky, 1972), pela enorme influência dos dois sobre qualquer filme que trabalhe com astronautas viajando pelo espaço e com planos da Terra, da Via Láctea e de espaçonaves. As referências a 2001 ficam particularmente claras quando a espaçonave entra no buraco de minhoca, lembrando a lendária cena da travessia do portal da última parte do filme de Kubrick, ou todas as – poucas – vezes em que Nolan utiliza uma valsa ou trilha sonora mais clássica para mostrar a nave e os planetas de forma mais fria e contemplativa. Quanto a Solaris, as referências aparecem na noção de que existe um lugar do espaço em que se pode comunicar com uma pessoa que se ama muito mas que está muito além do alcance físico de um ser humano (o espaço multi-dimensional dentro do buraco negro e o oceano do planeta Solaris) e no planeta cercado por um oceano sem fim, por exemplo.

No entanto, por mais que as referências visuais ou até sonoras sejam frequentes, a abordagem de temas entre Nolan e os dois diretores citados é bastante diferente. Enquanto Kubrick preferiu manter o mistério em relação à existência de vida inteligente fora da Terra, Nolan resolve a questão de forma simplista e quase sentimental - na cena em que Cooper se torna um dos seres superiores por uns instantes para tocar a mão da Dra. Brand -, mas seguindo esquema semelhante ao de 2001, com a raça superior concedendo a um humano o direito de também ascender a um nível superior depois de passar por um portal dimensional, por assim dizer. A ironia e crítica de Kubrick ao mostrar os conflitos e perigos na relação entre homem e máquina e os excessos no uso da tecnologia também somem, com as máquinas sendo usadas como “melhores amigos do homem” e motivadores de piadas. Claro, a paranoia sobre isso era bem maior nos anos 1960, mas não deixa de ser lamentável que o tema seja deixado de lado em favor da jornada do pai-herói, só aparecendo na cena em que o Dr. Mann imita a clássica cena “open the Pod bay doors, HAL”, de 2001. A diferença é maior ainda em relação a Tarkovsky, já que, por mais que os deem sinais de usarem a ficção científica como plataforma para tratar de dramas humanos, a fascinação de Nolan pelo gênero é bem mais evidente, como fica claro na forma como os dois observam os próprios planetas e estrelas, com Tarkovsky vendo-os com um olhar de admiração, mistério e que remete à Terra ou sugere uma saudade dela, enquanto Nolan os vê sem se demorar muito em planos contemplativos, de forma mais analítica, calculista, como peças em um quebra-cabeça. Além disso, por mais que, como foi citado, o “fantasma” de Cooper lembre os “fantasmas” da esposa falecida de Kelvin em certo nível, Nolan usa o recurso para valorizar o “poder do amor” e as possibilidades de inteligência superior dos humanos, deixando claro o papel da ciência naquilo tudo e como ela pode salvar a Terra. Já Tarkovsky usa isso como base para explorar o interior de Kelvin, com todos os seus traumas, conflitos éticos e incursões do subconsciente, e sempre mantendo uma dose de misticismo e do sobrenatural – ou seja, rejeitando a ciência.


Estando Interstellar no campo das “ficções científicas populistas”, talvez seja mais justa uma comparação com o mestre do gênero, Steven Spielberg. E mesmo essa comparação desfavorece Nolan, já que os filmes de Spielberg nesse estilo mantinham sempre em seu olhar um senso de deslumbre e inocência, como o de uma criança descobrindo um brinquedo novo, o que era até admirável, e até explica a preferência de Spielberg por não fazer de seus filmes quebra-cabeças e manter neles alguns mistérios e pontas soltas. O que é o contrário do que acontece com Nolan, que insiste em oferece a seus espectadores filmes mastigados e calculistas sob uma ilusão de realismo, sem espaço para ambiguidade.

No fim das contas, talvez Nolan "peque" mais pelo excesso de manipulação do que por qualquer outra coisa. O diretor parece querer colocar o espectador numa montanha russa daquelas mais caras do parque da Disney, cheias de curvas e reviravoltas, com efeitos de luz e som espetaculares e coisas pulando na sua direção de tempos em tempos. Mas nem todos gostam de montanhas russas, eu suponho, principalmente quando já se sabe de cor o percurso delas. Talvez Nolan devesse seguir o exemplo de seus personagens e explorar novos ares, novos mundos, talvez um em que o tempo siga seu curso mais devagar. Mesmo seus defensores poderiam agradecer (algum dia), já que mesmo os maiores fãs de montanhas russas sabem que as mais significativas ou melhores viagens que alguém pode fazer são as interiores (ou seja, que se passam dentro da cabeça de cada um), e não as exteriores em si (que indicam deslocamento espacial). 
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