27 de abril de 2015

Vício Inerente (Paul Thomas Anderson, 2014)

O que mais salta os olhos logo no início de Vício Inerente é o fato do novo filme de Paul Thomas Anderson parece ter saído direto de uma fantasia febril de um hippie decadente do início da década de 1970 (depois de Charles Manson ter manchado o sonho da geração Flower Power com violência e loucura em 1969). Todos os sinais clássicos de paranoia (da geração) hippie estão lá: os vilões que matam com overdoses de heroína como no clássico do blaxploitation Coffy (Jack Hill, 1973), os próprios traficantes de heroína colocados como pessoas “do mal”, os negros militantes do Partido dos Panteras Negras ou de algum outro movimento de nacionalismo negro, os policiais (brancos) corruptos, a sensação de que o governo ou o FBI estão perseguindo as pessoas erradas, os Hell’s Angels porraloucas e violentos, a desconfiança em relação a Hollywood, expressões como “groovy” e “far-out”, a busca por uma garota “with love in her eyes and flowers in her hair” (como diria Robert Plant), e por aí vai. A presença de todos esses elementos podia significar que o filme repete ou se conforma a clichês e lugares-comuns sobre a geração hippie (ou a ideias sobre a geração hippie), mas PTA os utiliza para lançar sobre eles um olhar irônico, conseguindo toma-los para si e subverte-los de uma forma que faz o “universo” do filme parecer familiar, mas ao mesmo tempo distorcido sob uma nuvem de fumaça e um senso sarcástico de insanidade que o tornam surpreendente.


De qualquer forma, aderir a esses checkpoints hippies justifica-se também pela maneira com que o filme procura expressar e explorar a visão de mundo de seu personagem principal, Larry “Doc” Sportello, que é justamente um hippie paranoico e decadente que exerce seu senso torto de moral e justiça ganhando uns trocados como detetive particular. Em sua busca por resolver o caso do desaparecimento de sua ex, Shasta, que sumiu junto com o bilionário dos imóveis Michael Wolfmann, Doc se envolve com praticamente todos os tipos de personagens citados anteriormente (entre outros, claro), combinados de forma surreal (ou “psicodélica”, se preferir). A insanidade desses encontros transmite bem um estado de paranoia e percepção alterada que parece afetar o personagem principal cada vez mais ao longo do filme – numa combinação entre a figura do detetive que vai ficando mais confuso conforme o caso que ele está investigando vai se revelando cada vez mais sem sentido (bastante comum entre os filmes noir, por exemplo) e a figura do viciado que parece cada vez mais desconectado da realidade por causa das drogas.


A evidência mais forte de que essa estratégia de PTA funciona é o fato de que muitas vezes os próprios espectadores entram na sensação de paranoia, não tendo certeza se o que veem é real ou um produto da paranoia de Doc. Apesar dessa incorporação da visão de Doc, dificilmente nos é revelado o que Doc realmente pensa ou suas reais motivações, até porque ele se mantém como um herói observador ou testemunha mais do que como um agente dos acontecimentos por boa parte da narrativa. Em várias cenas, estas revelações sobre as motivações de Doc acabam ficando para as narrações em off faladas por sua amiga Sortilège, que geralmente parece ser mais outro produto da paranoia/viagem de Doc do que uma pessoa real.


O que permanece constante ao longo do filme é a tentativa de Doc de estabelecer certa harmonia (mesmo que apenas aparente) em sua vida ou retornar para um momento no passado em que ele era feliz (ou seja, quando ele estava morando com Shasta, época que é relembrada através de vários flashbacks ao longo do filme), assim como os protagonistas dos dois últimos filmes de PTA, Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012). E, como nesses filmes, no fim das contas essa harmonia se mostra inatingível ou ilusória. No final, Doc até se reúne com Shasta, mas a cena dá a entender que aquela é outra de suas viagens, já que as janelas do carro estão tão embaçadas que a cena parece ter sido tirada de um sonho. Além das semelhanças com os dois filmes citados, mais meditativos e sóbrios, Vício Inerente marca também um certo retorno ao PTA de Boogie Nights (1997), não só por voltar a retratar os anos 1970 mas também pelo tom mais bem-humorado, marcado por uma ironia baseada no exagero e na caricatura (como na cena em que um exército de policiais cerca a cabana de “pussy-eating”, ou quando o detetive Big Foot come uma porção enorme de maconha). Nesse quesito, o filme também se aproxima de filmes de drugsploitation do fim dos anos 60 e começo dos anos 70 como The Trip (Roger Corman, 1967).


Vício Inerente também mostra PTA como um diretor de certa forma confortável, não tão angustiado em desenvolver e expressar uma estética própria como nos dois filmes anteriores, ou em combinar as ações dramáticas dos personagens e/ou acontecimentos da narrativa em um clímax megalomaníaco e grandioso como em Boogie Nights e Magnólia (1999). Não que ele tenha abandonado seu estilo próprio, digamos assim, já que algumas de suas marcas registradas são bem utilizadas como o uso de trilha sonora para expressar as emoções dos personagens e administrar a tensão, ou o uso de tomadas longas com pouca ou nenhuma movimentação de câmera em diálogos-chave de um modo que reforça a interpretação dos atores e desestabiliza a percepção de tempo (como na cena em que Shasta retorna do sumiço e seduz Doc). Mas não é para menos que este parece ser seu filme recente com mais “fidelidade” a um texto/roteiro já pronto (no caso, o livro Inherent Vice, de Thomas Pynchon), até pelo aparente aumento na quantidade (ou dependência) de diálogos entre os mais recentes do diretor, parecendo menos contemplativo ou focado em composições arrebatadoras e ambiências ou “moods” do que O Mestre e Sangue Negro.



Na prática, essa posição “intermediária” do filme não o torna mais interessante ou envolvente por si só, mas mostra um diretor que, mesmo numa posição de relativo conforto, ainda parece inquieto com sua estética e é capaz de produzir um filme bastante divertido e intrigante, principalmente em sua tentativa de incorporar a visão de seu protagonista e assim não só proporcionar mais uma interpretação maravilhosa do ator Joaquin Phoenix como uma narrativa que mantém os espectadores intrigados e em dúvida até o final, uma dúvida que não é causada por acontecimentos que aparentam ter mensagens escondidas ou significados sérios a serem refletidos ou explicados e assim por diante como filmes anteriores do diretor. Pelo contrário. PTA parece largar um pouco essa seriedade e essa megalomania – que não são inteiramente positivas – e relaxar, abraçando o espírito da geração hippie, mas não sem deixar de olhá-lo com uma distância irônica dada pela própria passagem do tempo – motivada principalmente por certo senso de fracasso e falta de direção que permeiam esse contexto sociocultural quando se analisam seus frutos. 

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