O que mais
salta os olhos logo no início de Vício Inerente é o fato do novo filme
de Paul Thomas Anderson parece ter saído direto de uma fantasia febril de um
hippie decadente do início da década de 1970 (depois de Charles Manson ter
manchado o sonho da geração Flower Power com violência e loucura em
1969). Todos os sinais clássicos de paranoia (da geração) hippie estão lá: os
vilões que matam com overdoses de heroína como no clássico do blaxploitation Coffy
(Jack Hill, 1973), os próprios traficantes de heroína colocados como
pessoas “do mal”, os negros militantes do Partido dos Panteras Negras ou de
algum outro movimento de nacionalismo negro, os policiais (brancos) corruptos,
a sensação de que o governo ou o FBI estão perseguindo as pessoas erradas, os
Hell’s Angels porraloucas e violentos, a desconfiança em relação a Hollywood,
expressões como “groovy” e “far-out”, a busca por uma garota “with
love in her eyes and flowers in her hair” (como diria Robert Plant), e por
aí vai. A presença de todos esses elementos podia significar que o filme repete
ou se conforma a clichês e lugares-comuns sobre a geração hippie (ou a ideias
sobre a geração hippie), mas PTA os utiliza para lançar sobre eles um olhar
irônico, conseguindo toma-los para si e subverte-los de uma forma que faz o
“universo” do filme parecer familiar, mas ao mesmo tempo distorcido sob uma
nuvem de fumaça e um senso sarcástico de insanidade que o tornam surpreendente.
De qualquer
forma, aderir a esses checkpoints hippies justifica-se também pela
maneira com que o filme procura expressar e explorar a visão de mundo de seu
personagem principal, Larry “Doc” Sportello, que é justamente um hippie paranoico
e decadente que exerce seu senso torto de moral e justiça ganhando uns trocados
como detetive particular. Em sua busca por resolver o caso do desaparecimento de
sua ex, Shasta, que sumiu junto com o bilionário dos imóveis Michael Wolfmann,
Doc se envolve com praticamente todos os tipos de personagens citados
anteriormente (entre outros, claro), combinados de forma surreal (ou
“psicodélica”, se preferir). A insanidade desses encontros transmite bem um
estado de paranoia e percepção alterada que parece afetar o personagem
principal cada vez mais ao longo do filme – numa combinação entre a figura do
detetive que vai ficando mais confuso conforme o caso que ele está investigando
vai se revelando cada vez mais sem sentido (bastante comum entre os filmes noir, por exemplo) e a figura do viciado
que parece cada vez mais desconectado da realidade por causa das drogas.
A evidência
mais forte de que essa estratégia de PTA funciona é o fato de que muitas vezes
os próprios espectadores entram na sensação de paranoia, não tendo certeza se o
que veem é real ou um produto da paranoia de Doc. Apesar dessa incorporação da
visão de Doc, dificilmente nos é revelado o que Doc realmente pensa ou suas
reais motivações, até porque ele se mantém como um herói observador ou
testemunha mais do que como um agente dos acontecimentos por boa parte da
narrativa. Em várias cenas, estas revelações sobre as motivações de Doc acabam
ficando para as narrações em off
faladas por sua amiga Sortilège, que geralmente parece ser mais outro produto
da paranoia/viagem de Doc do que uma pessoa real.
O que
permanece constante ao longo do filme é a tentativa de Doc de estabelecer certa
harmonia (mesmo que apenas aparente) em sua vida ou retornar para um momento no
passado em que ele era feliz (ou seja, quando ele estava morando com Shasta,
época que é relembrada através de vários flashbacks
ao longo do filme), assim como os protagonistas dos dois últimos filmes de PTA,
Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012). E, como nesses filmes, no
fim das contas essa harmonia se mostra inatingível ou ilusória. No final, Doc
até se reúne com Shasta, mas a cena dá a entender que aquela é outra de suas
viagens, já que as janelas do carro estão tão embaçadas que a cena parece ter
sido tirada de um sonho. Além das semelhanças com os dois filmes citados, mais
meditativos e sóbrios, Vício Inerente marca também um certo retorno ao
PTA de Boogie Nights (1997), não só por voltar a retratar os anos 1970
mas também pelo tom mais bem-humorado, marcado por uma ironia baseada no
exagero e na caricatura (como na cena em que um exército de policiais cerca a
cabana de “pussy-eating”, ou quando o detetive Big Foot come uma porção enorme
de maconha). Nesse quesito, o filme também se aproxima de filmes de drugsploitation do fim dos anos 60 e
começo dos anos 70 como The Trip (Roger Corman, 1967).
Vício
Inerente também
mostra PTA como um diretor de certa forma confortável, não tão angustiado em
desenvolver e expressar uma estética própria como nos dois filmes anteriores,
ou em combinar as ações dramáticas dos personagens e/ou acontecimentos da
narrativa em um clímax megalomaníaco e grandioso como em Boogie Nights e
Magnólia (1999). Não que ele tenha abandonado seu estilo próprio,
digamos assim, já que algumas de suas marcas registradas são bem utilizadas como
o uso de trilha sonora para expressar as emoções dos personagens e administrar
a tensão, ou o uso de tomadas longas com pouca ou nenhuma movimentação de
câmera em diálogos-chave de um modo que reforça a interpretação dos atores e
desestabiliza a percepção de tempo (como na cena em que Shasta retorna do
sumiço e seduz Doc). Mas não é para menos que este parece ser seu filme recente
com mais “fidelidade” a um texto/roteiro já pronto (no caso, o livro Inherent
Vice, de Thomas Pynchon), até pelo aparente aumento na quantidade (ou
dependência) de diálogos entre os mais recentes do diretor, parecendo menos
contemplativo ou focado em composições arrebatadoras e ambiências ou “moods” do que O Mestre e Sangue
Negro.
Na prática,
essa posição “intermediária” do filme não o torna mais interessante ou
envolvente por si só, mas mostra um diretor que, mesmo numa posição de relativo
conforto, ainda parece inquieto com sua estética e é capaz de produzir um filme
bastante divertido e intrigante, principalmente em sua tentativa de incorporar
a visão de seu protagonista e assim não só proporcionar mais uma interpretação
maravilhosa do ator Joaquin Phoenix como uma narrativa que mantém os
espectadores intrigados e em dúvida até o final, uma dúvida que não é causada
por acontecimentos que aparentam ter mensagens escondidas ou significados
sérios a serem refletidos ou explicados e assim por diante como filmes
anteriores do diretor. Pelo contrário. PTA parece largar um pouco essa
seriedade e essa megalomania – que não são inteiramente positivas – e relaxar,
abraçando o espírito da geração hippie, mas não sem deixar de olhá-lo com uma distância
irônica dada pela própria passagem do tempo – motivada principalmente por certo
senso de fracasso e falta de direção que permeiam esse contexto sociocultural quando
se analisam seus frutos.
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