Em
Os Amantes (1958), o diretor francês
Louis Malle se propõe a construir este filme sob a visão e perspectiva de sua
protagonista, Jeanne, interpretada pela atriz Jeanne Moreau. Ok, até aí tudo
bem. Na prática, isso significa que Malle se atém à visão de uma personagem
incuravelmente sonhadora, que busca fugir de um casamento falido com um marido desprovido
de afeto através dos encantos de seu amante espanhol e dos luxos supérfluos da
alta sociedade parisiense. Ok.
O problema é que, através desta proposta, o diretor parece absolutamente confortável em reproduzir sem praticamente nenhum indício de crítica uma visão ultrapassada da sexualidade feminina que podia parecer transgressora e chocante em Madame Bovary (livro de Gustave Flaubert de 1857) pelo simples fato de abordar o adultério de uma mulher através da perspectiva dela, mas que me parece completamente datada e retrógrada em 1958, e ainda mais em 2015. Para ficar no campo da literatura, Anna Karenina, de Liev Tolstói, lançado apenas 20 anos depois de Madame Bovary e aproximadamente 80 anos antes de Os Amantes, também trata da história de uma mulher que abandona sua família e sua vida social repleta de riquezas para tentar uma vida ao lado de seu amante, apenas para ver esse sonho ruir pouco depois. O final de Anna Karenina é muito mais trágico que o de Os Amantes, ok, mas o livro de Tolstói me parece muito mais justo com sua personagem principal, explorando incansavelmente seus conflitos internos e devaneios de uma forma que transparece empatia e até afeto, sem uma perspectiva machista (pelo menos não que eu me lembre). Meu Deus, basta lembrar de Mônica e o Desejo (Ingmar Bergman, 1953) e ...E Deus Criou A Mulher (Roger Vadim, 1956), dois filmes que vieram antes de Os Amantes e parecem muito mais justos e libertários que Os Amantes em seu tratamento da sexualidade feminina, principalmente o filme de Bergman.
Aliás,
Jeanne sofre do que eu chamaria de “síndrome de Madame Bovary”, sendo uma
mulher que, seduzidas por promessas de um grande amor vindas de seu amante
charmoso, só consegue se sentir plenamente feliz quando está ao lado de um
homem (ou, na prática, subordinada a ele), como se sua felicidade fosse pra
sempre atrelada ao homem. No filme, isto é reiterado a um nível quase ridículo,
com Jeanne não se mostrando capaz de escolher um vestido por conta própria sem parar
para pedir a aprovação do marido.
Assim,
o diretor desenvolve sua narrativa com poucos insights sobre os sentimentos conflituosos e complexos de Jeanne, e
critica sua situação com ainda menos empenho. A própria forma de apresentar
esses insights já parece preguiçosa e
equivocada, com voiceovers gravados
pela própria Jeanne Moreau falando da personagem no passado, de um jeito que
praticamente não demonstra qualquer tipo de reflexão posterior sobre os
acontecimentos e soa até falsa, assim como é o estilo de atuação over de praticamente todos os atores do
filme. Algumas exceções até aparecem em certos momentos, como quando Jeanne se
mostra duvidosa sobre suas ações (principalmente no fim do filme), mas ainda
assim de uma forma que parece falsa e vazia.
No
fundo, esta deficiência também acaba demonstrando uma incapacidade do diretor
de tornar os personagens mais profundos e surpreendentes e menos estáticos que
atinge todos os cinco personagens principais. Jeanne é a que mais escapa disso,
até pela atenção dada a ela (até por causa da devoção que o diretor sentia pela
atriz, visível em cada close-up e que às vezes parece vinda da perspectiva de um mortal
observando uma deusa), mas é difícil dar crédito quando seu momento de suposta
libertação (quando ela escapa de sua própria casa e do relacionamento com o
marido) não é nada mais do que uma nova submissão, composto por declarações de
amor recheadas de clichês e que passam longe de convencer, umas músicas de
Brahms para dar um ar de sofisticação e alta arte ao filme e uma direção de
fotografia que tenta ser tão pretensiosamente bela e brilhante (literalmente)
que acaba beirando o ridículo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário