29 de maio de 2015

Os Amantes (Louis Malle, 1958)

Em Os Amantes (1958), o diretor francês Louis Malle se propõe a construir este filme sob a visão e perspectiva de sua protagonista, Jeanne, interpretada pela atriz Jeanne Moreau. Ok, até aí tudo bem. Na prática, isso significa que Malle se atém à visão de uma personagem incuravelmente sonhadora, que busca fugir de um casamento falido com um marido desprovido de afeto através dos encantos de seu amante espanhol e dos luxos supérfluos da alta sociedade parisiense. Ok.


O problema é que, através desta proposta, o diretor parece absolutamente confortável em reproduzir sem praticamente nenhum indício de crítica uma visão ultrapassada da sexualidade feminina que podia parecer transgressora e chocante em Madame Bovary (livro de Gustave Flaubert de 1857) pelo simples fato de abordar o adultério de uma mulher através da perspectiva dela, mas que me parece completamente datada e retrógrada em 1958, e ainda mais em 2015. Para ficar no campo da literatura, Anna Karenina, de Liev Tolstói, lançado apenas 20 anos depois de Madame Bovary e aproximadamente 80 anos antes de Os Amantes, também trata da história de uma mulher que abandona sua família e sua vida social repleta de riquezas para tentar uma vida ao lado de seu amante, apenas para ver esse sonho ruir pouco depois. O final de Anna Karenina é muito mais trágico que o de Os Amantes, ok, mas o livro de Tolstói me parece muito mais justo com sua personagem principal, explorando incansavelmente seus conflitos internos e devaneios de uma forma que transparece empatia e até afeto, sem uma perspectiva machista (pelo menos não que eu me lembre). Meu Deus, basta lembrar de Mônica e o Desejo (Ingmar Bergman, 1953) e ...E Deus Criou A Mulher (Roger Vadim, 1956), dois filmes que vieram antes de Os Amantes e parecem muito mais justos e libertários que Os Amantes em seu tratamento da sexualidade feminina, principalmente o filme de Bergman.

Aliás, Jeanne sofre do que eu chamaria de “síndrome de Madame Bovary”, sendo uma mulher que, seduzidas por promessas de um grande amor vindas de seu amante charmoso, só consegue se sentir plenamente feliz quando está ao lado de um homem (ou, na prática, subordinada a ele), como se sua felicidade fosse pra sempre atrelada ao homem. No filme, isto é reiterado a um nível quase ridículo, com Jeanne não se mostrando capaz de escolher um vestido por conta própria sem parar para pedir a aprovação do marido.


Assim, o diretor desenvolve sua narrativa com poucos insights sobre os sentimentos conflituosos e complexos de Jeanne, e critica sua situação com ainda menos empenho. A própria forma de apresentar esses insights já parece preguiçosa e equivocada, com voiceovers gravados pela própria Jeanne Moreau falando da personagem no passado, de um jeito que praticamente não demonstra qualquer tipo de reflexão posterior sobre os acontecimentos e soa até falsa, assim como é o estilo de atuação over de praticamente todos os atores do filme. Algumas exceções até aparecem em certos momentos, como quando Jeanne se mostra duvidosa sobre suas ações (principalmente no fim do filme), mas ainda assim de uma forma que parece falsa e vazia.

No fundo, esta deficiência também acaba demonstrando uma incapacidade do diretor de tornar os personagens mais profundos e surpreendentes e menos estáticos que atinge todos os cinco personagens principais. Jeanne é a que mais escapa disso, até pela atenção dada a ela (até por causa da devoção que o diretor sentia pela atriz, visível em cada close-up e que às vezes parece vinda da perspectiva de um mortal observando uma deusa), mas é difícil dar crédito quando seu momento de suposta libertação (quando ela escapa de sua própria casa e do relacionamento com o marido) não é nada mais do que uma nova submissão, composto por declarações de amor recheadas de clichês e que passam longe de convencer, umas músicas de Brahms para dar um ar de sofisticação e alta arte ao filme e uma direção de fotografia que tenta ser tão pretensiosamente bela e brilhante (literalmente) que acaba beirando o ridículo.


Claro, não se pode culpar Jeanne Moreau por isso, considerando que seu rosto exprime muito mais complexidade e honestidade que os diálogos ou voiceovers ou qualquer coisa escrita no roteiro. No fim das contas, ela tenta fazer bem o que lhe é exigido. No entanto, não deixa de ser impressionante (e reconfortante) o quanto ela parece melhor e mais convincente alguns anos depois em Jules e Jim (François Truffaut, 1962), onde interpreta uma mulher que abraça sua singeleza e autonomia e se vê livre da tal “síndrome de Madame Bovary”. 

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