1 de junho de 2014

Sob A Pele (Jonathan Glazer, 2014)


Por dentro, quem é verdadeiramente podre? Uma alien predadora que mata pessoas para viver ou os homens aproveitadores e violentos? Qual deles é mais selvagem? O que mata por instinto de sobrevivência ou o que busca o prazer através da violência? Quem é mais desumano?

De fato, por mais que as reações emocionais da alien sejam estranhas, mínimas e difíceis de decifrar com certeza, fica claro que ela vai ficando cada vez mais humana conforme o filme vai passando, ou conforme as pessoas vão lhe parecendo cada vez mais desumanas. Os sinais surgem aos poucos, numa recusa em seduzir homens casados ou acompanhados, ou numa repulsa em ouvir o choro de um bebê após abandonar uma criança na praia. Mas essa progressão é tortuosa, não seguindo uma linearidade precisa, e dando sinais sutis e incertos de estar acontecendo. Por isso, é uma surpresa quando a alien parece chorar ao se olhar no espelho, e mais ainda quando ela decide poupar a vida de um homem deformado.

A demonstração de sentimentos como empatia, ressentimento e piedade sugere uma compreensão dos humanos além do mero instinto, já que o deformado foi o único a não agir de forma aproveitadora ou violenta ao entrar em contato com ela - no que acaba sendo uma crítica irônica e misantropa à pobreza espiritual da humanidade. Logo ele, o de pele mais avariada, é o mais importante em fazer a alien questionar sua própria vida como "ladra de peles", entrando em crise e abdicando do vazio de sua existência para viver como humana. Mas, depois de se ver impossibilitada de viver como uma pessoa normal, é justamente a sua vontade de parar de matar para sobreviver que a leva à morte.

Tudo isso pode ser concluído a partir das evidências e sugestões do filme, mas não há diálogos explicativos ou pedaços de informações mais precisos sobre a alien, ou o que parecem ser outros aliens. Com isso, a atenção se volta para suas imagens e sons ao invés das palavras. Ou seja, para o poderoso clima (“mood”) do filme.

O que se nota logo de cara é o ritmo estranho, meditativo, meio inquieto, com algumas tomadas se estendendo por alguns segundos (ou minutos) a mais que o esperado, como numa hipnose que absorve sua atenção até que você perca a noção de tempo. Sublinhando tudo isso há uma trilha sonora igualmente estranha e hipnótica, essencial em dar ao filme uma atmosfera “alien”, desconfortável, por vezes de suspense ou de tensão eminente. O tema de viola utilizado nas cenas em que a alien atrai e assassina os homens é o mais marcante, soando como algo quase de outro mundo, porém sedutor, encantador. A prova do quanto ele marca é o fato de que, quando ele é usado brevemente na cena do assassinato da alien, a percepção da cena aparenta mudar de repente e tudo parece indicar que alguma coisa grave e extraordinária acontecerá.

As poucas cenas em que há elementos de ficção científica explícitos também saltam aos olhos, a começar pelo enquadramento do olho simbolizando o nascimento da alien, logo no princípio. Muitas dessas cenas lembram o Kubrick de O Iluminado (1980) e 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), com uma poderosa junção entre músicas fortes e expressivas e imagens abstratas de cores ou luzes dramáticas que basta para criar uma atmosfera singular relacionada a algo desconhecido, de outro mundo – esse medo do desconhecido é justamente a base do poder dos filmes de terror e ficção científica.

Quanto ao vazio escuro para onde a alien leva suas vítimas, ele acaba funcionando não exatamente como um lugar (até porque uma das vítimas dança dentro do vazio como se estivesse numa boate), mas também como a representação um estado de espírito, mais especificamente o vazio existencial e espiritual da alien. Para os humanos, ele é quase um teste de integridade, considerando que o homem deformado é o único que consegue sair. O negro absoluto também acaba representando a própria morte, e o nada (“nothingness”). Assim, abdicar da rotina de roubar a pele de pessoas para viver também acaba sendo uma abdicação deste vazio.

No entanto, o primeiro vazio a aparecer no filme é totalmente branco, numa cena que representa o nascimento da alien. Essa cena estabelece bem o tom do filme ao mostrar Scarlett Johansson completamente nua, mas numa situação estranha, sem qualquer indício de erotização ou sensualidade. Ao não se aproveitar da beleza da nudez de Scarlett de forma erotizada no filme, Jonathan Glazer confere honestidade e seriedade à personagem (e ao próprio filme), a privando daquele tipo de malícia típico de personagens que usam o corpo (ou tem seus corpos usados pela narrativa ou pelo próprio diretor) para conseguir seus objetivos. Claro, a alien usa a beleza de seu corpo-casulo para atrair presas mais facilmente, mas parece não tirar proveito ou prazer disso, fazendo-o mais por instinto. Os homens, por sua vez, revelam ainda mais seu lado perigoso e violento ao verem na alien o corpo de Scarlett. No entanto, ela é tão inocente que, depois de encontrar o “amor”, parece descobrir seu corpo e sua sexualidade como uma criança.

Essa pureza também é demonstrada na maior integração que a alien aparenta ter com a natureza no fim do filme, tendo seu corpo mostrado como que numa fusão com a floresta onde ela se abriga, e contemplando as copas das árvores ou a chuva que cai no final. Essa integração acaba dando sinais de uma maior espiritualidade, ou de maior harmonia e integração com a natureza ou a vida na Terra em geral. Essa busca por pureza e emoção pode muito ter sido iniciada logo no nascimento da alien, já que uma das primeiras que ela vê é a humana cujas roupas ela tira derramando uma lágrima ao morrer.

Ao abdicar do roubo de peles em troca da fragilidade de uma vida mais humana, a alien termina morrendo, sim, mas não sem antes nos lembrar de algumas das sensações mais essenciais no processo de nos tornarmos humanos e nos reconhecermos como tal, como dúvida, culpa, desejo e empatia, e do que pode nos livrar do vazio escuro dentro de todos nós. 


P.S.: confesso que ainda não tenho conclusões totalmente satisfatórias sobre algumas partes do filme, como o real dos motoqueiros, a aparição do corpo "original" da alien na cena com o deformado no vazio e o porquê da tentativa da alien de ter uma relação "amorosa" com um humano ter parado onde parou, mas essas pontas soltas e esses mistérios só me fazem querer revisitar o filme, aumentando ainda mais o seu impacto.
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