Por dentro, quem
é verdadeiramente podre? Uma alien predadora que mata pessoas para viver ou os
homens aproveitadores e violentos? Qual deles é mais selvagem? O que mata por
instinto de sobrevivência ou o que busca o prazer através da violência? Quem é
mais desumano?
De fato, por
mais que as reações emocionais da alien sejam estranhas, mínimas e difíceis de
decifrar com certeza, fica claro que ela vai ficando cada vez mais humana
conforme o filme vai passando, ou conforme as pessoas vão lhe parecendo cada
vez mais desumanas. Os sinais surgem aos poucos, numa recusa em seduzir homens
casados ou acompanhados, ou numa repulsa em ouvir o choro de um bebê após
abandonar uma criança na praia. Mas essa progressão é tortuosa, não seguindo
uma linearidade precisa, e dando sinais sutis e incertos de estar acontecendo.
Por isso, é uma surpresa quando a alien parece chorar ao se olhar no espelho, e
mais ainda quando ela decide poupar a vida de um homem deformado.
A demonstração
de sentimentos como empatia, ressentimento e piedade sugere uma compreensão dos
humanos além do mero instinto, já que o deformado foi o único a não agir de
forma aproveitadora ou violenta ao entrar em contato com ela - no que acaba sendo uma crítica irônica e misantropa à pobreza espiritual da humanidade. Logo ele, o de
pele mais avariada, é o mais importante em fazer a alien questionar sua própria
vida como "ladra de peles", entrando em crise e abdicando do vazio de sua existência para viver como
humana. Mas, depois de se ver impossibilitada de viver como uma pessoa normal,
é justamente a sua vontade de parar de matar para sobreviver que a leva à
morte.
Tudo isso pode
ser concluído a partir das evidências e sugestões do filme, mas não há diálogos
explicativos ou pedaços de informações mais precisos sobre a alien, ou o que
parecem ser outros aliens. Com isso, a atenção se volta para suas imagens e
sons ao invés das palavras. Ou seja, para o poderoso clima (“mood”) do filme.
O que se nota logo
de cara é o ritmo estranho, meditativo, meio inquieto, com algumas tomadas se
estendendo por alguns segundos (ou minutos) a mais que o esperado, como numa
hipnose que absorve sua atenção até que você perca a noção de tempo. Sublinhando
tudo isso há uma trilha sonora igualmente estranha e hipnótica, essencial em dar
ao filme uma atmosfera “alien”, desconfortável, por vezes de suspense ou de
tensão eminente. O tema de viola utilizado nas cenas em que a alien atrai e
assassina os homens é o mais marcante, soando como algo quase de outro mundo, porém
sedutor, encantador. A prova do quanto ele marca é o fato de que, quando ele é
usado brevemente na cena do assassinato da alien, a percepção da cena aparenta
mudar de repente e tudo parece indicar que alguma coisa grave e extraordinária
acontecerá.
As poucas cenas
em que há elementos de ficção científica explícitos também saltam aos olhos, a
começar pelo enquadramento do olho simbolizando o nascimento da alien, logo no
princípio. Muitas dessas cenas lembram o Kubrick de O Iluminado (1980) e 2001:
Uma Odisséia no Espaço (1968), com uma poderosa junção entre músicas fortes
e expressivas e imagens abstratas de cores ou luzes dramáticas que basta para
criar uma atmosfera singular relacionada a algo desconhecido, de outro mundo –
esse medo do desconhecido é justamente a base do poder dos filmes de terror e
ficção científica.
Quanto ao vazio
escuro para onde a alien leva suas vítimas, ele acaba funcionando não exatamente
como um lugar (até porque uma das vítimas dança dentro do vazio como se
estivesse numa boate), mas também como a representação um estado de espírito, mais
especificamente o vazio existencial e espiritual da alien. Para os humanos, ele
é quase um teste de integridade, considerando que o homem deformado é o único
que consegue sair. O negro absoluto também acaba representando a própria morte,
e o nada (“nothingness”). Assim, abdicar da rotina de roubar a pele de pessoas
para viver também acaba sendo uma abdicação deste vazio.
No entanto, o
primeiro vazio a aparecer no filme é totalmente branco, numa cena que
representa o nascimento da alien. Essa cena estabelece bem o tom do filme ao
mostrar Scarlett Johansson completamente nua, mas numa situação estranha, sem
qualquer indício de erotização ou sensualidade. Ao não se aproveitar da beleza
da nudez de Scarlett de forma erotizada no filme, Jonathan Glazer confere
honestidade e seriedade à personagem (e ao próprio filme), a privando daquele
tipo de malícia típico de personagens que usam o corpo (ou tem seus corpos
usados pela narrativa ou pelo próprio diretor) para conseguir seus objetivos.
Claro, a alien usa a beleza de seu corpo-casulo para atrair presas mais
facilmente, mas parece não tirar proveito ou prazer disso, fazendo-o mais por
instinto. Os homens, por sua vez, revelam ainda mais seu lado perigoso e
violento ao verem na alien o corpo de Scarlett. No entanto, ela é tão inocente
que, depois de encontrar o “amor”, parece descobrir seu corpo e sua sexualidade
como uma criança.
Essa pureza
também é demonstrada na maior integração que a alien aparenta ter com a
natureza no fim do filme, tendo seu corpo mostrado como que numa fusão com a
floresta onde ela se abriga, e contemplando as copas das árvores ou a chuva que
cai no final. Essa integração acaba dando sinais de uma maior espiritualidade,
ou de maior harmonia e integração com a natureza ou a vida na Terra em geral.
Essa busca por pureza e emoção pode muito ter sido iniciada logo no nascimento
da alien, já que uma das primeiras que ela vê é a humana cujas roupas ela tira
derramando uma lágrima ao morrer.
Ao abdicar do
roubo de peles em troca da fragilidade de uma vida mais humana, a alien termina
morrendo, sim, mas não sem antes nos lembrar de algumas das sensações mais essenciais
no processo de nos tornarmos humanos e nos reconhecermos como tal, como dúvida,
culpa, desejo e empatia, e do que pode nos livrar do vazio escuro dentro de todos
nós.
P.S.: confesso que ainda não tenho conclusões totalmente satisfatórias sobre algumas partes do filme, como o real dos motoqueiros, a aparição do corpo "original" da alien na cena com o deformado no vazio e o porquê da tentativa da alien de ter uma relação "amorosa" com um humano ter parado onde parou, mas essas pontas soltas e esses mistérios só me fazem querer revisitar o filme, aumentando ainda mais o seu impacto.
P.S.: confesso que ainda não tenho conclusões totalmente satisfatórias sobre algumas partes do filme, como o real dos motoqueiros, a aparição do corpo "original" da alien na cena com o deformado no vazio e o porquê da tentativa da alien de ter uma relação "amorosa" com um humano ter parado onde parou, mas essas pontas soltas e esses mistérios só me fazem querer revisitar o filme, aumentando ainda mais o seu impacto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário