29 de janeiro de 2014

Alice Nas Cidades (Wim Wenders, 1974)




Algumas partes do filme podem até parecer mal desenvolvidas ou dignas de um cineasta inexperiente, principalmente em comparação com obras posteriores do diretor, mas nem por isso Alice deixa de ser um filme adorável. Seja observando seus personagens ou a própria paisagem, Wenders já mostrava que tem uma rara sensibilidade para evocar sentimentos como solidão, nostalgia, melancolia e uma sensação de errância, não-pertencimento e alienação -  Enfim, o tipo de coisa que é essencial para um road movie, com personagens vagando, tentando escapar de suas próprias responsabilidades, fardos e bagagens emocionais, se perdendo para poder se encontrar e encontrar paz em experiências e lembranças efêmeras. É o caso do jornalista do filme, o típico personagem errante de Wenders. Incapaz de se prender a um lugar ou pessoa, ele acaba estabelecendo uma relação de afeto com a pequena Alice, relação que é mostrada de um jeito leve, divertido e despretensioso.
Como sempre, as imagens de Wenders são frequentemente mais eloquentes que os próprios diálogos, e a narrativa é pontuada com planos belíssimos, como o reflexo de Alice numa fotografia de Polaroid, os arranha-céus de Nova York vistos de cabeça pra baixo e a simples chegada de um carro a uma praia do litoral da Califórnia. A trilha sonora, bastante usada mas geralmente em trechos curtos demais, até evoca a solidão e errância do protagonista, mas não chega a ser marcante, em parte por falta de qualidade do próprio compositor e em parte pelo seu uso esparso - sem falar que as músicas que tocam no rádio às vezes funcionam melhor que a trilha sonora. Técnica à parte, o que realmente dá um charme especial para o filme é realmente a química entre os dois atores principais, a busca dos personagens por um lugar em que eles se sintam confortáveis para fincar raízes e sua maneira meio inocente e infantil de olhar a vida, com a qual todos podem se identificar.
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28 de janeiro de 2014

O Lobo de Wall Street (Martin Scorsese, 2013)


Em O Lobo de Wall Street (Martin Scorsese, 2013), um homem (Jordan Belfort) conta a estória de como deixou de ser um joão-ninguém para se tornar um homem rico e poderoso através de lavagem de dinheiro e fraudes, para depois ser pego e perder tudo, numa trama recheada de drogas, intrigas e crime. Dito assim, fica evidente que o filme vem do mesmo molde (e do mesmo diretor) de Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995). Por um lado, pode-se dizer que Scorsese recorreu a uma velha “fórmula” (mesmo que o filme traga novos elementos à sua filmografia), o que é uma pena. Por outro, O Lobo de Wall Street vai além de seus antecessores em certos pontos, como na quantidade de sexo, drogas e palavrões (o filme bateu o recorde de uso da palavra “fuck” e suas variações em um longa de ficção, com 506 execuções), e, mais importante, no ritmo, ainda mais frenético. Mesmo assim, é discutível se O Lobo tem a mesma qualidade dos outros dois, principalmente Os Bons Companheiros.
Em seu novo filme, Scorsese nos mostra como seria se Jordan Belfort pudesse contar sua própria estória através de imagem e som, guiando os acontecimentos do filme como se eles fossem vistos pelos olhos do seu personagem principal, assim como fez em Os Bons Companheiros, com imagens congeladas, planos-sequência grandiosos, narrações em off, músicas aos montes e demonstrações de bravata e macheza. Assim, em boa parte (ou nas melhores partes) do filme, a direção assume o caráter ou ponto de vista de seu protagonista, se tornando extravagante e hedonista.
A edição de Thelma Schoonmaker, parceira de Scorsese desde Quem Bate À Minha Porta (1967), também assume o ritmo delirante de Jordan, numa montagem afiada e rápida, digna de um viciado em cocaína. Mesmo com três horas de duração, há pouquíssimos diálogos cansativos ou pausas para respirar, e elas se concentram justamente no período em que Jordan se afasta dos negócios e das drogas, no fim do filme. Até os blecautes e amnésias de Jordan são “respeitados” a princípio, para depois serem revelados com grande efeito cômico. De certa forma, a fluidez frenética do ritmo corresponde à obsessão doentia de Jordan por dinheiro e poder e sua ambiciosa busca por uma vida de rei, que por sua vez reflete a ambição de boa parte da plateia do filme e os recentes problemas econômicos internos dos EUA, com protestos contra o acúmulo de capital do 1% mais rico da população e o descontentamento geral com banqueiros e corretores.
Jordan praticamente não para por um minuto para mostrar arrependimento ou consciência sobre o que está fazendo, a não ser quando se divorcia da primeira mulher, num momento raro de comoção genuína do personagem, que é rapidamente esquecido. Seus comentários e reflexões são cínicos e irônicos, e geram um tipo estranho de empatia. Por um lado, o charme e o senso de humor de Jordan (numa interpretação maravilhosa de Leonardo DiCaprio) são inegáveis e o aproximam do público, principalmente com ele se dirigindo a nós diretamente, mas sua vida é tão cheia de excessos e loucuras que tudo passa a ser visto como que a certa distância segura, mas irônica.
A câmera corresponde visualmente a esses excessos com tomadas ostensivas, como o plano-sequência exagerado em que a câmera viaja por sobre os convidados do casamento de Jordan com Naomi, as sequências em câmera lenta demonstrando o barato dos “ludes” e as tomadas nas quais ele discursa para seus empregados, em composições que o fazem parecer um general falando para uma horda de soldados.
As próprias músicas da trilha sonora são usadas de maneira exagerada e efêmera, como uma das coisas que Jordan compra e descarta, com intervenções breves (a maioria de menos de meio minuto) e de resultados variados. As músicas do filme (e são muitas, como em todo bom filme de Scorsese) funcionam para encorpar o estado emocional ou o ritmo das cenas, precisão cronológica à parte. Qualquer tipo de coerência quanto à época em que as ações do filme se passam é jogada pela janela assim que começa o riff inconfundível da primeira música, Dust My Broom, blues cantado por Elmore James em 1951, ou quando Everlong, música de 1997 do Foo Fighters, é tocada. A ligação entre elas e as imagens nem sempre é muito evidente, mas o conjunto passa uma ideia de macheza encenada, diversão hedonista e um estilo meio “badass”, casando bem com o clima do filme e dando urgência à montagem.
Mas seria tolice achar que a cumplicidade de Scorsese com o protagonista vá além de propósitos narrativos e signifique que o diretor seja leniente com as ações de Jordan e sua matilha, ou as glorifique. Mostrar os absurdos dos corretores de Wall Street de forma estilizada não é o mesmo que celebrar essas ações. Ao invés disso, o diretor usa esses acontecimentos para tecer uma crítica a toda essa ganância, dotando as cenas de um tom frequentemente satírico e irônico, que ridiculariza os personagens. Até Kimmie, uma corretora que consegue ser humanizada e demonstrar sentimentos, não escapa e só consegue pensar em seu terno Armani ao ser presa. Como em Dr. Fantástico (Stanley Kubrick, 1964), as situações na qual o filme se baseia são tão absurdas que é impossível mostrá-las de forma séria e realista. Sob essa perspectiva, o filme se torna uma ótima comédia, e não uma tragédia enfadonha. 

P.S.: dando continuidade à comparação com Os Bons Companheiros, é uma pena que Naomi não tenha direito a mostrar seu ponto de vista tão claramente quanto a mulher de Henry. Seria uma boa chance de humanizar e desenvolver a personagem, que muitas vezes não passa de um fantoche ou modelo. Aliás, a dificuldade de desenvolver seus personagens femininos é uma dificuldade de Scorsese desde sempre.
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14 de janeiro de 2014

O Espelho (Andrei Tarkovsky, 1975)



Alexei está doente, prestes a morrer, incapaz de lidar com toda a culpa, melancolia e depressão dentro de si. Sua alma está presa a seu corpo, assim como ele está preso à sua própria vivência, sua memória, seus laços, suas raízes. A jornada de Alexei, personagem-principal e narrador do filme é realizada interiormente, dentro de seus próprios pensamentos e seu próprio espírito. Ele percebe que não conseguirá morrer ou viver em paz se não entrar harmonia com suas próprias raízes e demônios, visto que é impossível simplesmente apagá-los da mente. A estrutura febril e aparentemente vaga do filme dá cor e som às visões, memórias e sonhos de seu narrador, materializando seu fluxo de consciência de uma forma poética e subjetiva, única na história do cinema. Os diferentes segumentos do filme dificilmente atendem a uma ordem lógica de tempo e espaço, dando mais importância a um tipo de lógica emocional e à carga poética e emocional presente na jornada do narrador que a fazer sentido de forma objetiva e precisa. A estética e o conjunto de imagens que alimentam o filme são bastante pessoais, deixando claro que não há como dissociar a figura de Alexei da do próprio diretor do filme, Andrei Tarkovsky.
          
  Não que o filme não faça sentido. Não é difícil perceber que é a voz do narrador por trás da câmera (que assume seu ponto de vista) que impulsiona a narrativa, e que os sonhos e lembranças apresentados fazem parte de sua vida ou da vida daqueles próximos a ele. Afinal de contas, ele estava dormindo na cena em que a mãe conversa um estranho na casa do campo, por exemplo. A ligação entre passado e presente na mente do narrador é tão forte que é a imagem do seu filho, que aparece quando ele se lembra de sua infância (interpretados pelo mesmo ator), assim como sua ex-esposa e sua mãe são iguais (ambas interpretadas pela ótima Margarita Terekhova).
      
      Desde o começo do filme é externada a ideia de reestabelecer ou recuperar uma comunicação que foi perdida, desde a cena do gago recuperando a fala no início e seguindo até a ligação telefônica entre Alexei (que não falava há três dias) e sua mãe, que mostra de cara a mágoa que existe entre os dois. Lembrando que não se pode dissociar o narrador e o diretor do filme, isso acaba funcionando em dois níveis: em primeiro lugar, a jornada interna do filme é a maneira que o narrador encontra de se comunicar e achar harmonia com seus tormentos do passado. Além disso, o próprio diretor emprega uma jornada semelhante ao fazer o filme, achando um alívio para seus demônios e complexos de culpa. Tarkovsky também encontrou em O Espelho uma forma de se expressar cinematograficamente que era nova para ele na época e ainda parece bastante inovadora e ousada até hoje, aliando narrativa ficcional, imagens de arquivo ou documentário, material autobiográfico e elementos vindos da literatura, música e pintura.
          

  As idas e vindas do filme geram uma narrativa complexa, mas não inacessível. Através da inserção de material de arquivo que mostram cenas da estória de duas gerações de russos (em ordem cronológica), O Espelho se torna não só a estória de um homem, mas de um homem e seu contexto histórico, ou um homem e seu povo. Isso fica claro quando Tarkovsky evoca a atmosfera tensa durante o governo Stálin na cena em que a mãe do narrador fica desesperada por causa de um possível erro de revisão no jornal estatal, ou retrata a pobreza dos camponeses russos durante a 2ª Guerra ao mostrar a mãe do narrador tendo que vender bijuterias de casa em casa. Além disso, por mais misteriosas e oníricas que as cenas de sonho e memória possam ser, e por mais inesperada que seja a maneira em que elas surgem, todas elas são dotadas de uma beleza bastante poética, principalmente nas cenas que ressaltam a natureza e as paisagens da infância do narrador de forma apaixonada, e carregam sentimentos com os quais todos podem se identificar, como nostalgia, melancolia, abandono, saudade e carinho. Assim, Tarkovsky consegue ser extremamente pessoal em sua linguagem, mas sem deixar de refletir sobre o mundo à sua volta, e sem perder a capacidade de tocar os outros ou de deixá-los relacionar a narrativa às suas próprias experiências e impressões.
          
  Através da exploração de sua estética, Tarkovsky também ampliou os limites da linguagem cinematográfica, mas ao mesmo tempo refletindo sobre as outras artes que influenciavam o cinema de uma forma ou de outra. Fica clara a tentativa do diretor de dar mais respaldo e autenticidade (no sentido que Bordieu dá ao termo) ao cinema através da associação do filme com artes mais tradicionais como pintura, música e literatura. De certa forma, essa é só outra maneira de refletir sobre as próprias raízes. Além de usar Bach (entre outros compositores) na trilha sonora, ele faz referências a Leonardo da Vinci, emula o quadro “Caçadores na Neve”, de Pieter Bruegel, e coloca o próprio pai, um respeitado poeta russo, para recitar alguns de seus próprios poemas. Mas há coisas em O Espelho que só o cinema pode proporcionar, como a forma com que o preto e branco aliado e a câmera lenta quebram a percepção da realidade de uma forma sutil e onírica, ou o modo como a música de fundo muda completamente o sentimento que uma imagem passa. E, melhor ainda, há coisas que só o cinema de Tarkovsky pode proporcionar, como a câmera que parece ter adquirido vida própria e flutua pelo cenário, revelando novos personagens, espaço-tempos e perspectivas, ou a facilidade com que se entra no “espaço onírico” do personagem, colocando o espectador num estado contemplativo ou meditativo e fazendo-o perder a noção do tempo.
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O Segundo Rosto (John Frankenheimer, 1966)


Há uma sensação permanente de estranhamento, de perigo eminente e de distorção da realidade permeando todos os planos de O Segundo Rosto, já desde a ótima abertura, elaborada por Saul Bass (o mesmo de Um Corpo Que Cai e tantos outros). Nada é o que parece ser neste filme, e até mesmo a câmera parece estar sob o efeito de algum tranquilizante ou entorpecente, chegando a filmar por vezes os personagens de maneira torta, desfocada ou intrusiva (como se fosse operada por um bêbado suado que tem que chegar perto demais pra falar com as pessoas), dando uma sensação regular de desconforto.

O modo como Frankenheimer usa a linguagem cinematográfica para passar a sensação de Arthur/Tony (ótima atuação de Rock Hudson, aliás) de estar vendo através de olhos que não são seus ou de perceber as coisas como se seu corpo não respondesse normalmente é singular, usando sons e imagens de forma quase expressionista, mas sem nenhum comprometimento ou digressão séria. A começar pela trilha sonora sombria de Jerry Goldsmith, essencial em manter a atmosfera meio sombria do filme e deixar o espectador tenso desde as notas amedrontadoras do órgão na abertura. Se o filme consegue ser um suspense tão bom, grande parte da responsabilidade deve ser dada à trilha sonora.

Outra parte considerável pode ser creditada à direção de fotografia primorosa de James Wong Howe, que utiliza os mais variados recursos para transmitir a estranheza do personagem principal. Ângulos tortos, espelhos, luz forte evidenciando o suor nos rostos ou oblíqua para formar sombras, diferentes tipos de lente que alongam e deformam as imagens (principalmente nas cenas de sonho), câmera na mão para passar instabilidade ou uma proximidade desconfortável dos rostos, uma alta profundidade de campo que às vezes traz mais confusão que clareza e algumas tomadas realmente impressionantes em que a câmera fica presa aos personagens enquanto eles se movem, balançando de maneira vertiginosa.

A montagem também tem seus méritos, alternando alguns planos longos ou cortados de maneira calma com sucessões de imagens inquietantes nas cenas mais tensas. Só o relacionamento entre Tony e Nora é que parece um pouco apressado, apesar de funcionar bem dentro da trama.

Mas O Segundo Rosto vai além de ser um ótimo exercício estético. Mesmo sem forçar, o filme trata com eficiência (e um sutil cinismo irônico) das questões que surgem num homem que aceita trocar de identidade, como a fragilidade dos laços que o ligam ao trabalho e à família, a banalidade e “escravidão” da vida burguesa, o livre-arbítrio e o conflito com os desejos do subconsciente. Afinal de contas, quem nunca quis mudar de vida e ser outra pessoa, certo? Mas e se lhe for privado o direito de escolher a vida nova? Onde está a liberdade prometida, se “a companhia” vigia seus passos e o impede de fazer escolhas reais, assim como na opressora vida real? O filme funciona tão bem porque os personagens conseguem externar esses dilemas de forma digna e convincente, culminando na emocionante despedida de Arthur/Tony e Charlie. 
   
   Há também um sarcasmo mórbido que vem à tona de tempos em tempos, personificado geralmente nos personagens da “companhia”, como o velhinho esperto que comanda as operações, o padre capaz de fazer um mini-velório em menos de um minuto, e o cirurgião que vê o corpo reformado de Tony como sua “obra-prima”.
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Minha Noite Com Ela (Eric Rohmer, 1969)


            Rohmer sempre tem algumas surpresas na manga, e elas são essenciais para manter seus filmes interessantes, mas isso nunca o impede de ser honesto e claro com o público e seus próprios personagens. Aliás, poucos diretores dão tanta margem para seus personagens exporem suas ideias, trejeitos e segredos quanto Rohmer. Em Minha Noite Com Ela e em qualquer outro filme do diretor, a discussões das ideias e motivações (particularmente neste caso, ideias sobre amor, moral e religião) é essencial para os personagens de Rohmer. O que impressiona é que essas discussões demonstram espontaneidade e informalidade, sempre com fluidez e atenção ao ritmo e às pausas, mas nunca soam rasas ou previsíveis. Os personagens podem até dar a impressão de estarem definidos e com cartas marcadas desde o começo, mas camadas e mais camadas vão se desvelando conforme as conversas avançam, fazendo eles parecerem pessoas autênticas, reais.
            Essa ideia de que é preciso deixar as coisas parecendo tão reais quanto possível é importante também para a estética de Rohmer, bastante simples e com mínima manipulação por meio de música, montagem ou o que quer seja. Em Minha Noite Com Ela até mais que em filmes posteriores do diretor, o “tempo real” também é respeitado, com uma quantidade razoável de tomadas de alguns minutos, geralmente focadas nas falas de uma só pessoa. Assim, o trabalho dos atores em imprimir um ritmo envolvente e interessante ao diálogo é importantíssimo, e os atores principais do filme não decepcionam, principalmente Jean-Louis Trintignant e Françoise Fabian, que têm performances ótimas.
            Apesar de abordar a estética e a forma de uma maneira simples e até conservadora, Rohmer não deixa de apresentar elementos visuais interessantes em seus filmes, principalmente os com o diretor de fotografia Nestor Almendros. Neste filme, Almendros faz um ótimo trabalho ao usar a luz natural do inverno francês, num preto e branco que captura e respeita o brilho da neve, dos postes à noite e das decorações natalinas em composições simples, sem apelar para ângulos rebuscados ou movimentos de câmera muito elaborados. O posicionamento dos atores na composição também é importante, sempre se alterando conforme a cena se desenvolve e as relações entre os personagens mudam, como na longa cena na casa de Maud.
            As cenas em que o personagem de Trintignant corre atrás e perde “a loira” (com uma câmera que às vezes lembra Scottie seguindo Madeleine em Um Corpo Que Cai) ou a cena em que ele a acha no meio da rua mostram o quanto Rohmer faz questão de usar o acaso e a surpresa como elementos que impulsionam a narrativa de seus filmes. De fato, nenhum diretor faz o acaso parecer tão genuíno e “realista” quanto ele. Assim como nos outros filmes da série de Contos Morais, a conclusão do filme não apresenta uma conclusão propriamente dita ou qualquer tipo de lição de moral definitiva. Rohmer se delicia em ver seus protagonistas apresentarem seus próprios padrões e conceitos morais, só para força-los a tomar decisões que testam e questionam esses mesmos conceitos.
            Minha Noite Com Ela tem o que o cinema de Rohmer melhor tem a oferecer: é imprevisível mas tangível e autêntico ao mesmo tempo, parece real como a vida, tem bons personagens e um enredo despretensioso e recheado de acaso como só a ficção pode oferecer.
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13 de janeiro de 2014

Nashville (Robert Altman, 1975)



            Em seu retrato irônico da “middle America”, Robert Altman pode até ser sutil, mas nem por isso coloca o pé no freio. Longe disso. Não há redenção, salvação ou alívio para nenhum dos mais de vinte personagens principais do filme, e a imagem que o conjunto deles passa, quase como em uma tapeçaria, é a de uma América disfuncional, veladamente racista, levemente paranoica, desprovida de maiores virtudes ou discernimento (político ou qualquer que seja), vivendo de aparências e prazeres efêmeros, e com devoção desmedida pelas estrelas de Hollywood. O humor de Altman não é tão ácido quanto o de outros americanos que analisaram sua própria sociedade, como Woody Allen e David Lynch, mas há sempre uma dose de sarcasmo presente em cada cena (várias delas absolutamente hilárias), num tom que pode desembocar no absurdo surreal ou até mesmo na melancolia e pena. Apesar do exagero de algumas situações, a direção de Altman permanece simples, inabalada, como se ele observasse tudo o que se passa calado, encostado num canto com um sorriso irônico no rosto.
            O diretor demonstra respeito e dá bastante ênfase à música country de Nashville e às suas canções, não só porque o filme retrata justamente essa cena musical, mas por entender que a música é importante para compreender essa sociedade. O country de Nashville é inofensivo, cristão, desprovido de senso crítico ou sociopolítico (e com orgulho disso), nacionalista, sentimental e excessivamente apegado às tradições. E isso diz muito sobre essas pessoas, assim como o fato do candidato à presidente do filme ser um reformista torto e sem ideias realistas ou úteis, que nunca mostra a cara e que discursaria numa imitação cafona do Parthenon.
Nessa cacofonia de dezenas de vozes, há espaço e tempo para todos, rendendo um rico mosaico da América naquele momento (embora muitas das características ridicularizadas no filme ainda perdurem naquela sociedade até hoje), com suas simpatias e neuroses. É indiscutível a grandeza de Altman quando se considera que ele consegue não só apresentar de uma maneira divertida e sensível, mas ainda assim crítica (talvez até cínica), enquanto dá equilíbrio e direção firme para as atuações dos (aproximadamente) 24 personagens principais do filme. 
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Azul É A Cor Mais Quente (Abdellatif Kechiche, 2013)


    Adèle pode até preferir esconder seu diário e seus sentimentos, mas o modo como o diretor, Abdellatif Kechiche, conduz o filme faz parecer que estamos lendo o diário da personagem principal. Testemunhamos uma quantidade esmagadora de eventos da juventude de Adèle, e alguns daqueles que não são mostrados são justamente os que ela queria encobrir, como o envolvimento com o professor-colega e os pequenos rolos que ela teve (será?) após se separar de Emma. Além de proximidade, isso demonstra uma espécie rara de comprometimento e sinceridade do diretor para com a personagem principal, sem sentimentalismos ou manipulações baratas.
      Narrativa à parte, essa proximidade fica óbvia pela maneira como Kechiche filma a estória, com praticamente todas as tomadas em planos fechados ou close-ups (mas abrindo-os em momentos-chave, claro, geralmente para demonstrar solidão), correspondendo visualmente ao teor de intimidade do que se passa na tela e fazendo o espectador se sentir dentro da vida de Adèle (mesmo Emma só é vista sob a perspectiva de Adèle) em seus mínimos detalhes, virtudes e vícios (comer de boca aberta!) de uma forma que seria claustrofóbica se não fosse executada de forma tão sensível e eficiente. A preferência aos planos fechados também acaba contribuindo com a fluidez da montagem. Ao não pontuar a transição entre as cenas com planos abertos ou stablishing shots, o diretor não nos dá aquele velho código de transição entre uma cena e outra (hoje em dia, é a hora em que as pessoas olham o celular pra ver quanto tempo de filme já se passou), dando uma importância mais uniforme às tomadas e evitando a quebra de ritmo. No fim das contas, há tanto equilíbrio na montagem que praticamente nada parece desnecessário, mesmo com três horas de filme. Até as longas cenas de sexo, por mais direto-ao-ponto e “atuadas” que possam parecer, se justificam por estabelecer um contraste entre o relacionamento de Adèle com seu colega de escola, que nem se importa com o prazer dela, e o com Emma, que mostra uma troca mútua de carinho. A paixão demonstrada pelas duas nas cenas de sexo também torna o amor entre elas mais convincente, e, por consequência, a dor da separação ainda maior. A fragilidade e a entrega que as duas atrizes principais passam e a química entre elas é essencial para o filme, e os close-ups constantes dão realce às emoções contidas nos rostos das duas.
       Kechiche também mostra uma atenção no uso das cores e dos sons que reforça a narrativa, mostrando as mudanças e sentimentos de Adèle de outras formas. O azul, obviamente, é associado não só aos olhos e principalmente ao cabelo de Emma, mas também à ideia que Adèle tem de amor à primeira vista, coisa que ela só conhecia pelos livros. Adèle usa uma echarpe com detalhes azuis quando termina o relacionamento com o colega de escola, e se veste cada vez mais de azul quando começa o namoro com Adèle. Quando o relacionamento das duas está bem, até os lençóis e acessórios de cama são predominantemente azuis. Após a separação, Adèle volta a usar roupas azuis, e até chega a ficar completamente envolvida pelo azul do mar após a separação, numa das cenas mais bonitas do filme. No encontro com Adèle num café, Emma é iluminada por uma forte luz azul enquanto passa, como se Adèle só pudesse ter um vislumbre da antiga Emma antes dela partir. Quando Emma muda seu cabelo para loiro, o amor dela por Adèle já parece estar em declínio, e o amarelo acaba sendo associado ao amadurecimento de Adèle e ao término do relacionamento das duas, assim como o vermelho. Quando Adèle trai Emma pela primeira vez, ela o faz sob uma forte luz vermelha. Posteriormente, Emma abandona o azul que tingia seus retratos de Adèle em favor do vermelho nos retratos de Louise. Nessa hora, o diálogo deixa o jogo de cores explícito demais, mas nada que chegue a estragá-lo. Os raios de luz solar que ofuscam a lente também são usados de forma planejada. Eles aparecem timidamente quando Adèle dispensa seu colega de escola, e vão ficando mais aparentes conforme o amor de Adèle por Emma aumenta. Quando elas se separam, a luz solar diminui drasticamente, até se tornar algo longínquo no horizonte ao final, como uma promessa distante de felicidade. Outro elemento que volta no final é a música que Adèle ouve na rua ao conhecer Emma, no único uso de som não-diegético do filme, funcionando como que um lembrete da dor nostálgica de Adèle e um indicativo de um novo começo, talvez.
          A decisão de não usar uma trilha sonora que manipulasse as reações do espectador e dar preferência às cores para dar suporte emocional à estória é louvável e torna a inserção de uma música no final desnecessária, mas o filme podia muito bem terminar com You're A Big Girl Now, de Bob Dylan. Sua letra, que retrata a dor e fragilidade de um homem que se vê envolto em tristeza após terminar um relacionamento e reconhece que é menos maduro que sua ex para lidar com isso, casaria perfeitamente com a estória de Adèle. Mas não é só uma questão de Emma ser mais madura que Adèle. Ao fim do filme, uma transformação dá a impressão de ter ocorrido Adèle também, e ela parece ter crescido de alguma forma, deixando de ser uma menina no fim da adolescência e se tornando uma mulher. Assim como alguma coisa pode mudar no espectador que se deixar marcar por esse filme.
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