Alexei está doente, prestes a morrer, incapaz
de lidar com toda a culpa, melancolia e depressão dentro de si. Sua alma está
presa a seu corpo, assim como ele está preso à sua própria vivência, sua
memória, seus laços, suas raízes. A jornada de Alexei, personagem-principal e
narrador do filme é realizada interiormente, dentro de seus próprios pensamentos
e seu próprio espírito. Ele percebe que não conseguirá morrer ou viver em paz
se não entrar harmonia com suas próprias raízes e demônios, visto que é
impossível simplesmente apagá-los da mente. A estrutura febril e aparentemente
vaga do filme dá cor e som às visões, memórias e sonhos de seu narrador,
materializando seu fluxo de consciência de uma forma poética e subjetiva, única
na história do cinema. Os diferentes segumentos do filme dificilmente atendem a
uma ordem lógica de tempo e espaço, dando mais importância a um tipo de lógica
emocional e à carga poética e emocional presente na jornada do narrador que a
fazer sentido de forma objetiva e precisa. A estética e o conjunto de imagens
que alimentam o filme são bastante pessoais, deixando claro que não há como
dissociar a figura de Alexei da do próprio diretor do filme, Andrei Tarkovsky.
Não que o filme não faça sentido. Não é difícil perceber que é a voz do narrador por trás da câmera (que assume seu ponto de vista) que impulsiona a narrativa, e que os sonhos e lembranças apresentados fazem parte de sua vida ou da vida daqueles próximos a ele. Afinal de contas, ele estava dormindo na cena em que a mãe conversa um estranho na casa do campo, por exemplo. A ligação entre passado e presente na mente do narrador é tão forte que é a imagem do seu filho, que aparece quando ele se lembra de sua infância (interpretados pelo mesmo ator), assim como sua ex-esposa e sua mãe são iguais (ambas interpretadas pela ótima Margarita Terekhova).
Desde o começo do filme é externada a ideia de reestabelecer ou recuperar uma comunicação que foi perdida, desde a cena do gago recuperando a fala no início e seguindo até a ligação telefônica entre Alexei (que não falava há três dias) e sua mãe, que mostra de cara a mágoa que existe entre os dois. Lembrando que não se pode dissociar o narrador e o diretor do filme, isso acaba funcionando em dois níveis: em primeiro lugar, a jornada interna do filme é a maneira que o narrador encontra de se comunicar e achar harmonia com seus tormentos do passado. Além disso, o próprio diretor emprega uma jornada semelhante ao fazer o filme, achando um alívio para seus demônios e complexos de culpa. Tarkovsky também encontrou em O Espelho uma forma de se expressar cinematograficamente que era nova para ele na época e ainda parece bastante inovadora e ousada até hoje, aliando narrativa ficcional, imagens de arquivo ou documentário, material autobiográfico e elementos vindos da literatura, música e pintura.
As idas e vindas do filme geram uma narrativa complexa, mas não inacessível. Através da inserção de material de arquivo que mostram cenas da estória de duas gerações de russos (em ordem cronológica), O Espelho se torna não só a estória de um homem, mas de um homem e seu contexto histórico, ou um homem e seu povo. Isso fica claro quando Tarkovsky evoca a atmosfera tensa durante o governo Stálin na cena em que a mãe do narrador fica desesperada por causa de um possível erro de revisão no jornal estatal, ou retrata a pobreza dos camponeses russos durante a 2ª Guerra ao mostrar a mãe do narrador tendo que vender bijuterias de casa em casa. Além disso, por mais misteriosas e oníricas que as cenas de sonho e memória possam ser, e por mais inesperada que seja a maneira em que elas surgem, todas elas são dotadas de uma beleza bastante poética, principalmente nas cenas que ressaltam a natureza e as paisagens da infância do narrador de forma apaixonada, e carregam sentimentos com os quais todos podem se identificar, como nostalgia, melancolia, abandono, saudade e carinho. Assim, Tarkovsky consegue ser extremamente pessoal em sua linguagem, mas sem deixar de refletir sobre o mundo à sua volta, e sem perder a capacidade de tocar os outros ou de deixá-los relacionar a narrativa às suas próprias experiências e impressões.
Através da exploração de sua estética, Tarkovsky também ampliou os limites da linguagem cinematográfica, mas ao mesmo tempo refletindo sobre as outras artes que influenciavam o cinema de uma forma ou de outra. Fica clara a tentativa do diretor de dar mais respaldo e autenticidade (no sentido que Bordieu dá ao termo) ao cinema através da associação do filme com artes mais tradicionais como pintura, música e literatura. De certa forma, essa é só outra maneira de refletir sobre as próprias raízes. Além de usar Bach (entre outros compositores) na trilha sonora, ele faz referências a Leonardo da Vinci, emula o quadro “Caçadores na Neve”, de Pieter Bruegel, e coloca o próprio pai, um respeitado poeta russo, para recitar alguns de seus próprios poemas. Mas há coisas em O Espelho que só o cinema pode proporcionar, como a forma com que o preto e branco aliado e a câmera lenta quebram a percepção da realidade de uma forma sutil e onírica, ou o modo como a música de fundo muda completamente o sentimento que uma imagem passa. E, melhor ainda, há coisas que só o cinema de Tarkovsky pode proporcionar, como a câmera que parece ter adquirido vida própria e flutua pelo cenário, revelando novos personagens, espaço-tempos e perspectivas, ou a facilidade com que se entra no “espaço onírico” do personagem, colocando o espectador num estado contemplativo ou meditativo e fazendo-o perder a noção do tempo.
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