24 de fevereiro de 2014

Ela (Spike Jonze, 2013)


Duas cadeiras à minha direita no cinema, uma menina de uns 20 anos se sentou confortavelmente, e depois de vestir uma meia três-quartos e um casaco, guardou o celular no suporte que supostamente devia servir para copos. Quando seu celular vibrava (e acendia!) ou quando o filme dava uma desacelerada, ela parava pra checar e trocar mensagens, e às vezes nem assim, parecendo ter tido a impressão de que ele tinha vibrado sem isso ter acontecido. Num mundo em que isso é visto como uma ação quase normal e corriqueira, a sociedade futurista onde Ela se passa não parece tão distante assim, o que pode tornar a visão de um mundo emocionalmente e afetivamente aleijado menos surpreendente, porém mais assustadora.

No mundo em questão, os sentimentos são tratados com cautela, negligência e até pragmatismo, a tal ponto que as cartas escritas à mão, justamente uma das demonstrações mais marcantes e tangíveis de afeto (provavelmente elas sobreviveram justamente por isso, já que as pessoas parecem estar à beira de perder a capacidade de escrever à mão diante de tantos celulares e aparelhos digitais por todos os lados), viraram um item a ser comprado e encomendado. Afinal de contas, tudo se compra e tudo se faz com a ajuda de computadores, mas um computador não pode expressar emoções tão eloquentemente quanto uma pessoa de verdade. Já em 2000, antes da explosão da internet banda larga, PJ Harvey dizia na música The Letter, “who is left that writes letter these days?”, descrevendo assim o fetiche das velhas cartas: “it turns me on/to imagine/your blue eyes/on my words”. O trabalho de escrever as tais cartas a partir de fragmentos da vida dos outros é perfeito para Theodore, um escritor inseguro e recluso, de personalidade sensível e frágil. Ele é ótimo para simular emoções dos outros e elaborar demonstrações de carinho, mas parece ser incapaz de fazer isso com a mesma facilidade na vida real.

Isso muda de figura com a chegada dos OS1, que parecem ter sido feitos sob medida para um homem solitário como Theodore. Como era de se esperar, ele se encontra tão desesperado por carinho que se apaixona por Samantha, seu sistema operacional, que de certa forma é tão saturada de emoções pré-programadas e tão carente quanto ele, fazendo tudo para agradá-lo. Suas necessidades meio que se completam, com Samantha se desenvolvendo e parecendo ficar mais artificial e mais humana ao mesmo tempo, o que é interessante para o filme, mas inevitavelmente cria problemas para Theodore. A grande sacada é proporcionar momentos em que Theodore parece mais máquina que Samantha, sendo ela tão espontânea e “leve”, enquanto ele é ligeiramente travado e parece reagir de forma mecânica em certas situações. Mesmo assim, às vezes a fragilidade de Theodore e a “perfeição” de Samantha parece passar um pouco da conta, parecendo um pouco insistentes, assim como o status de “escritor solitário” de Theodore, vagando sozinho pela floresta e transitando entre a multidão da cidade.

A trilha sonora composta pela banda Arcade Fire também parece insistente e um pouco desnecessária às vezes (mesmo quando serve só como plano de fundo), principalmente nas partes com o bom e velho pianinho para aumentar a dramaticidade de uma cena. As músicas funcionam melhor quando realmente tomam conta da ação do filme, como nas “sinfonias” escritas por Samantha. O filme é melhor resolvido visualmente, com um cenário futurista sem exageros ou equipamentos chamativos demais. Num mundo aparentemente dominado por uma decoração minimalista meio à la Tok & Stok, os cômodos são assépticos e repletos de espaços vazios que mais oprimem e isolam as pessoas do que as libertam. Visto através de um filtro que reduz as cores e o brilho e dá certo destaque aos tons de amarelo e rosa (que inevitavelmente lembra uma estética Instagram). As únicas cores realmente vivas parecem surgir em paisagens naturais, como a praia e a montanha. Mas o que mais se destaca é a proximidade frequente da câmera com Theodore (e ocasionalmente com outros personagens, principalmente Amy, muito bem interpretada por Amy Adams, que parece mais autêntica do que nunca), que realçam a sensação de intimidade e o tom frequentemente confessional do filme. Essa proximidade se revela através de supercloses frontais que realçam as nuances da ótima interpretação de Joaquin Phoenix, planos de cima para baixo como se Theodore fosse vigiado por um tipo de inteligência superior ou planos do lado da cama, como se ele fosse visto por alguém que estivesse dividindo a cama. As tomadas que simulam uma visão em primeira pessoa também chamam a atenção, sendo usadas muito bem para retratar as súbitas lembranças de Theodore, principalmente as que envolvem sua ex-esposa.

Apesar do tom do filme ser levemente melancólico e resignado, o roteiro de Spike Jonze reserva alguns momentos sarcásticos, nos quais o diretor brinca com o estado afetivo dessa sociedade, como quando todos no metrô parecem estar imersos em relações com seus próprios SOs, desconexos do mundo real. Às vezes Jonze também chega a flertar com o absurdo, como quando uma mulher do chat pede que Theo finja que a está esganando com um gato morto (como se fingir uma transa por telefone com um desconhecido já não fosse estranho e ridículo o suficiente), ou quando uma mulher “empresta” o corpo a Samantha ao se comover com o amor dela por Theo.

Ao mostrar as várias fases do relacionamento de Theo com Samantha, desde a emoção da primeira “transa” e o clássico “só liguei pra dizer que te amo” até a crise de ciúmes e o desespero quando o par some, Jonze critica nossa dependência em computadores ao mesmo tempo em que cria uma jornada emocional e afetiva onde é fácil se identificar de alguma forma ou em algum ponto. Ao fim, Theodore (e Amy, mas de outra forma, já que seu relacionamento era “real” e parecia bastante estável, mas passível de um fim da mesma forma que o de Theo) parece aprender que o par perfeito não existe (o modo como o relacionamento termina é perfeito para mostrar isso, além do fato de tornar o caso mais humano, já que pessoas param de se amar e desistem de relacionamentos subitamente com frequência), e que relacionamentos são coisas extremamente complicadas que podem lhe destruir emocionalmente, mas que vale a pena sentir na pele esse turbilhão de sentimentos, e que se deve valorizar justamente isso: o contato, a pele, as experiências verdadeiras, por mais dolorosas que elas possam ser.
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Nebraska (Alexander Payne, 2013)


Woody Grant, personagem principal de Nebraska, é colocado como um errante já no primeiro plano do filme, o que deixa a pergunta “por que ele está vagando?” desde o princípio. Claro, superficialmente ele acredita estar indo buscar um prêmio de um milhão de dólares no Nebraska, mas ele foge das desilusões de sua vida tanto quanto busca seu pote de ouro no fim do arco-íris. Sua insistência em vagar a pé e a razão aparentemente ridícula para sua viagem o tornam uma visão imediata quase tão confusa quando a do errante Travis (interpretado por Harry Dean Stanton) de Paris, Texas (Wim Wenders, 1984).

Pouco a pouco, o filme vai revelando as camadas por trás do homem rabugento e lacônico, sugerindo os porquês de sua errância através da relação problemática com mulher e filhos, da distância de sua família, da juventude difícil e da sensação de que foi levado pela correnteza na vida, sem ter podido escolher direito nem seu casamento. Para este velho ligeiramente gagá, parece não restado nada além de uma cerveja gelada de vez em quando. Woody até dá uma explicação para sua obsessão em vagar e coletar o tal prêmio em Nebraska, mas, diante de todas as situações que o filme apresenta, ela acaba não sendo inteiramente satisfatória ou conclusiva. Não que essa explicação seja o porquê do filme, ou sua parte mais importante.

A busca do filho de Woody (David) por conhecer melhor e agradar o pai que provavelmente está em seus últimos anos de vida, e assim compensar anos e anos de uma relação distante e complicada, se configura como a essência do filme, e o que move a narrativa. Servindo como plano de fundo (mas muitas vezes ganhando destaque) está um retrato satírico da vida no Meio-Oeste americano, com seus cidadãos com mentalidade de cidade pequena, sem maiores ambições ou futuro e sem muita coisa na cabeça. A interação de Woody e seu filho com esse ambiente mistura estranheza, empatia (bem restrita) e hostilidade, gerando momentos de humor seco e sarcástico. Apesar de apresentar algumas situações bem absurdas, Alexander Payne nunca chega a exagerar ou ridicularizar seus personagens ou mostra-los com desdém.

O diretor também não apela para manipulações, como fica evidente na boa trilha sonora, que apesar de usada com frequência, não procura intensificar demais a carga dramática das cenas, se reservando a prover um “mood” e dar certa cor local ao filme com um toque de country, blues e folk. Realmente, o filme não precisa disso para ser bonito. Ele já cativa com sua simplicidade, sua economia na forma de contar a estória, e a atuação maravilhosa de Bruce Dern (o elenco como um todo está bem dirigido). Também é digna de nota a fotografia de um preto e branco cinzento, grisalho como os cabelos de Woody, de baixo contraste e sem brilho, reforçando a ideia de um ambiente envelhecido, sem glamour ou charme. 
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11 de fevereiro de 2014

Trapaça (David O. Russell, 2013)



Pra um filme que se propõe a mostrar as empreitadas (nem sempre dentro dos limites da legalidade e sanidade) de seus protagonistas através do ponto de vista deles, Trapaça (David O. Russell, 2013) parece surpreendentemente limpo, inocente. A visão sobre os fatos não parece idealizada ou pessoal, e sim inofensiva e quase pueril. A estética do filme também não dá sinais contundentes de ser guiadas pelos personagens, e até as narrações em off não ajudam muito, raramente conseguindo soar interessantes ou perceptivas. Ao invés disso, o que prevalece é o olhar exagerado e melodramático do diretor David Russell, e seu gosto por situações absurdas e direção de arte exagerada (ok, estamos nos anos 70, deu pra entender).

Mais uma vez, ele tinge a narrativa com a maior carga dramática que consegue imaginar, criando situações de conflito e discussão que se tornam plataformas para a consagração de seu time de atores, mas que por vezes parecem forçadas ou desnecessárias. Um prato cheio pra quem acha que atuar bem é fazer escândalos ou loucuras a torto e a direito. Claro, não há como negar que o elenco tenha momentos em que mostram boa interpretação e interação, como na briga entre as personagens de Amy Adams e Jennifer Lawrence, mas parte considerável dos diálogos soa artificial e “over-the-top”, com personagens que têm dificuldade para parecerem genuínos. A própria construção dos personagens segue em parte à cartilha do próprio Russell, com tipos levemente loucos ou disfuncionais, “bigger than life” e incapazes de tomar o controle de suas próprias vidas. A estrutura familiar fragilizada e a busca de um “american way of life” torto também estão presentes, personificas principalmente no personagem de Christian Bale.

A abordagem de Rusell é bastante similar à de Martin Scorsese em filmes como Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (199          5) (pra não dizer que é uma imitação, o que não estaria longe da verdade), protagonizados por homens gananciosos envolvidos com mulheres loucas e ambiciosas, que se apaixonam por uma vida de farsa e glamour até acabarem deixando escapar seu poder e senso de moral. Vários elementos típicos de Scorsese estão presentes em Trapaça, como os planos-sequência e movimentos elaborados de câmera, o uso frequente de trechos de músicas pop para dar ritmo e “clima” às cenas, as tomadas em câmera lenta, as já mencionadas narrações em off e um certo brilho e pompa no ar. Esses traços de estilo até chegam a funcionar bem em alguns momentos, mas nenhum deles chega a funcionar tão bem quanto num filme de Scorsese. Os movimentos de câmera, em especial, muitas vezes parecem exagerados e sem propósito aparente. Até Christian Bale parece imitar alguns trejeitos de Robert DeNiro na cena em que eles interagem. Sim, Robert DeNiro, protagonista dos dois filmes de Scorsese citados e de muitos outros do diretor, faz uma participação especial como um gângster perigoso, servindo como um contraste que faz os protagonistas parecerem mais inocentes e humanos (ou seja, propensos ao melodrama, de certa forma).

Em seus melhores momentos, Trapaça é divertido e instigante, com boas interações entre seus protagonistas. Em seu pior, o filme é capaz de dar desaceleradas bruscas no ritmo ou de perder a capacidade de manter o interesse do espectador (a amizade de Carmine e Irving, por exemplo, soa completamente enfadonha, assim como outros rumos estranhos tomados pelo roteiro), ou parece simplesmente bizarro, como na cena em que Edith grita num banheiro como se fosse uma pantera (e com o som de uma!) ou quebra um retrato de vidro no rosto de Richie, numa cena pessimamente montada.
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