14 de janeiro de 2014

O Segundo Rosto (John Frankenheimer, 1966)


Há uma sensação permanente de estranhamento, de perigo eminente e de distorção da realidade permeando todos os planos de O Segundo Rosto, já desde a ótima abertura, elaborada por Saul Bass (o mesmo de Um Corpo Que Cai e tantos outros). Nada é o que parece ser neste filme, e até mesmo a câmera parece estar sob o efeito de algum tranquilizante ou entorpecente, chegando a filmar por vezes os personagens de maneira torta, desfocada ou intrusiva (como se fosse operada por um bêbado suado que tem que chegar perto demais pra falar com as pessoas), dando uma sensação regular de desconforto.

O modo como Frankenheimer usa a linguagem cinematográfica para passar a sensação de Arthur/Tony (ótima atuação de Rock Hudson, aliás) de estar vendo através de olhos que não são seus ou de perceber as coisas como se seu corpo não respondesse normalmente é singular, usando sons e imagens de forma quase expressionista, mas sem nenhum comprometimento ou digressão séria. A começar pela trilha sonora sombria de Jerry Goldsmith, essencial em manter a atmosfera meio sombria do filme e deixar o espectador tenso desde as notas amedrontadoras do órgão na abertura. Se o filme consegue ser um suspense tão bom, grande parte da responsabilidade deve ser dada à trilha sonora.

Outra parte considerável pode ser creditada à direção de fotografia primorosa de James Wong Howe, que utiliza os mais variados recursos para transmitir a estranheza do personagem principal. Ângulos tortos, espelhos, luz forte evidenciando o suor nos rostos ou oblíqua para formar sombras, diferentes tipos de lente que alongam e deformam as imagens (principalmente nas cenas de sonho), câmera na mão para passar instabilidade ou uma proximidade desconfortável dos rostos, uma alta profundidade de campo que às vezes traz mais confusão que clareza e algumas tomadas realmente impressionantes em que a câmera fica presa aos personagens enquanto eles se movem, balançando de maneira vertiginosa.

A montagem também tem seus méritos, alternando alguns planos longos ou cortados de maneira calma com sucessões de imagens inquietantes nas cenas mais tensas. Só o relacionamento entre Tony e Nora é que parece um pouco apressado, apesar de funcionar bem dentro da trama.

Mas O Segundo Rosto vai além de ser um ótimo exercício estético. Mesmo sem forçar, o filme trata com eficiência (e um sutil cinismo irônico) das questões que surgem num homem que aceita trocar de identidade, como a fragilidade dos laços que o ligam ao trabalho e à família, a banalidade e “escravidão” da vida burguesa, o livre-arbítrio e o conflito com os desejos do subconsciente. Afinal de contas, quem nunca quis mudar de vida e ser outra pessoa, certo? Mas e se lhe for privado o direito de escolher a vida nova? Onde está a liberdade prometida, se “a companhia” vigia seus passos e o impede de fazer escolhas reais, assim como na opressora vida real? O filme funciona tão bem porque os personagens conseguem externar esses dilemas de forma digna e convincente, culminando na emocionante despedida de Arthur/Tony e Charlie. 
   
   Há também um sarcasmo mórbido que vem à tona de tempos em tempos, personificado geralmente nos personagens da “companhia”, como o velhinho esperto que comanda as operações, o padre capaz de fazer um mini-velório em menos de um minuto, e o cirurgião que vê o corpo reformado de Tony como sua “obra-prima”.

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