24 de novembro de 2014

Interstellar (Christopher Nolan, 2014)

Se Christopher Nolan pode fazer referência à parábola de Lázaro para ilustrar sua história, permita-me então dizer que o diretor mais parece encarnar o personagem Ícaro em seu novo filme. Ok, ele abusa menos dos clímaces superdilatados de meia hora com a ação dividida em diversas localidades do que em outros filmes, mas ele nunca tinha feito um filme tão longo, com tantas estrelas, tantos efeitos especiais, numa escala tão grande ou com tantos detalhezinhos e problemas para o protagonista. Para não sair do campo das mitologias, a jornada do piloto/fazendeiro Coop pode ser comparada também à de Ulisses na Odisseia, que, assim como todos os outros protagonistas dos últimos filmes de Nolan, enfrentam mil tormentos para reestabelecer o contato com suas famílias e retornar a uma ideia de lar ou casa que já se perdeu. Enfim, nada muito diferente de tantas e tantas jornadas de heróis ao longos dos séculos.


Mas não é pela falta de originalidade que Nolan parece Ícaro, e sim pela megalomania, pelos excessos, pela artificialidade e superficialidade. Mais uma vez, Nolan (e seu irmão) enchem o roteiro de informações desnecessárias e conflitos que vêm a ser resolvidos ou contornados até com certa facilidade, o que faz eles parecerem até evitáveis, principalmente quando levam o filme a tropeçar em seus próprios critérios de verossimilhança. Isso revela um diálogo verborrágico, excessivamente preocupado em criar um turbilhão de informações num esquema que mais parece um quebra-cabeça que dá ao espectador uma sensação “overwhelming”, de confusão, que pode acabar sendo confundida com complexidade, profundidade ou “viagem”. Como consequência, os diálogos frequentemente parecem carregados, mecânicos, desprovidos de senso de improviso ou informalidade, e com personagens que parecem se expor demais, tentando colocar para fora seus sentimentos e ideias mas parecendo estarem mais elaborando em cima dos “temas” do filme. Que são muitos, diga-se de passagem, passando desde a falta de cuidado dos seres humanos com os recursos naturais da Terra até corrida espacial, relação entre pais e filhos, teoria da relatividade, conflito entre razão e emoção, possibilidade de vida inteligente em outros planetas e desespero diante do apocalipse, só para citar alguns. Porém, como já foi citado, o estilo verborrágico e excessivo do roteiro acaba tornando a abordagem desses temas, em sua maioria, superficial, com uma história que parece querer abarcar coisas demais.

O roteiro megalomaníaco também acaba prejudicando vários personagens, que parecem mal construídos ao não mostrarem coerência própria ou motivações convincentes. É o caso da Dra. Brand, uma das personagens mais importantes da história, que tem um caso de amor mal resolvido com o tal Dr. Edmunds. A relação de amor dos dois é mencionada várias vezes, mas sempre com pressa, sem nunca chegar a convencer. Brand até o usa como justifica para um discurso bastante piegas e que soa totalmente fora de lugar sobre o poder do amor, mas isso não muda muita coisa. Outro personagem mal construído é o filho de Cooper, Tom, principalmente em sua fase adulta, quando é interpretado por Casey Affleck. Sua passagem de filho fiel e dedicado a filho convencido a esquecer o pai é rápida demais para ser convincente, apesar de gradual, e sua agressividade em relação à irmã carece de motivação ou justificativa suficiente – a morte de um seus filhos é mencionada, mas como algo jogado e mal explorado -, parecendo servir mais como auxílio na construção do clímax do que qualquer outra coisa. Ao final, sua morte nem é mencionada. O cientista interpretado por Matt Damon, Dr. Mann, também parece carecer de evidências ou motivações que esclareçam suas ações, de tal modo que até o competente Matt Damon parece perdido, parecendo são demais para ser louco e desnorteado demais para alguém tão racional, por assim dizer. Já o primeiro astronauta a morrer, Doyle, é tratado com tão pouca importância que nem lembramos mais seu nome em cinco minutos após sua morte, que acontece numa cena confusa que é concluída com um plano quase desrespeitoso de tão frio.


Mesmo mal construídos, todos (ou quase todos) esses personagens contribuem, em níveis diferentes, para a construção dos momentos e cenas de melodrama do filme, que marcam a narrativa mais do que em qualquer outro filme de Nolan. O diretor explora incansavelmente as idas e vindas da relação entre Cooper e sua filha, Murph, explorando a carga dramática da separação dos dois e não se contendo em transformar o filme em uma jornada do pai em busca de salvar e rever a filha. Hans Zimmer pontua os momentos mais críticos e emotivos dos dois com uma trilha sonora típica de melodrama, sentimental, apelativa, cheia daquele pianinho ao melhor estilo “chore mais”. Ao seguir esse caminho (mais fácil), Nolan acaba até tirando parte do foco nas atuações de seus próprios atores. Até porque Jessica Chastain e Matthew McConaughey estão (e são) ótimos, e não precisam desse tipo de coisa (ou pelo menos não tanto assim) para cativar o público.

O melodrama pode ser novidade, mas a elaboração de sequências climáticas com dezenas de minutos de duração ancoradas em montagem paralela não podia ficar de fora, seguindo firme e forte. No entanto, apesar das cenas de clímax parecerem menos megalomaníacas em Insterstellar, por pelo menos durar menos e intercalar menos espaços do que em filmes como A Origem (2010) e The Dark Knight Rises (2012), isto não as torna melhor executadas. Para funcionar bem, este esquema precisa de ações em espaços diferentes mas em níveis de ritmos similares, mas não é o que ocorre aqui. Enquanto Cooper tenta aprender a manipular a gravidade no espaço gerado dentro do buraco negro por “eles”, Murph quebra a cabeça para entender como captar os sinais do pai para entender a mesma gravidade em seu quarto. Até aí tudo bem, mas enquanto as seções de Cooper geram fascínio e tensão quase naturalmente pelo caráter inusitado (ou espetacular) do cenário e pela boa interpretação de McDonaughey, a tensão das partes de Murph é gerada pela possibilidade do irmão voltar logo para casa e cometer alguma violência contra ela. No entanto, como já foi colocado, essa possibilidade é mal construída, e acaba se desconcretizando de forma embaraçosa. Sem falar que a quantidade de ações propriamente ditas que os dois realizam é bastante diferente, já que Murph, na grande maioria da cena, apenas... quebra a cabeça, ou seja, pensa, quase parada.


Outra coisa que Nolan não podia passar sem são as comparações com outros filmes (melhores) sobre viagem espacial, em especial 2001: Uma Odisseia No Espaço (Stanley Kubrick, 1968) e Solaris (Andrei Tarkovsky, 1972), pela enorme influência dos dois sobre qualquer filme que trabalhe com astronautas viajando pelo espaço e com planos da Terra, da Via Láctea e de espaçonaves. As referências a 2001 ficam particularmente claras quando a espaçonave entra no buraco de minhoca, lembrando a lendária cena da travessia do portal da última parte do filme de Kubrick, ou todas as – poucas – vezes em que Nolan utiliza uma valsa ou trilha sonora mais clássica para mostrar a nave e os planetas de forma mais fria e contemplativa. Quanto a Solaris, as referências aparecem na noção de que existe um lugar do espaço em que se pode comunicar com uma pessoa que se ama muito mas que está muito além do alcance físico de um ser humano (o espaço multi-dimensional dentro do buraco negro e o oceano do planeta Solaris) e no planeta cercado por um oceano sem fim, por exemplo.

No entanto, por mais que as referências visuais ou até sonoras sejam frequentes, a abordagem de temas entre Nolan e os dois diretores citados é bastante diferente. Enquanto Kubrick preferiu manter o mistério em relação à existência de vida inteligente fora da Terra, Nolan resolve a questão de forma simplista e quase sentimental - na cena em que Cooper se torna um dos seres superiores por uns instantes para tocar a mão da Dra. Brand -, mas seguindo esquema semelhante ao de 2001, com a raça superior concedendo a um humano o direito de também ascender a um nível superior depois de passar por um portal dimensional, por assim dizer. A ironia e crítica de Kubrick ao mostrar os conflitos e perigos na relação entre homem e máquina e os excessos no uso da tecnologia também somem, com as máquinas sendo usadas como “melhores amigos do homem” e motivadores de piadas. Claro, a paranoia sobre isso era bem maior nos anos 1960, mas não deixa de ser lamentável que o tema seja deixado de lado em favor da jornada do pai-herói, só aparecendo na cena em que o Dr. Mann imita a clássica cena “open the Pod bay doors, HAL”, de 2001. A diferença é maior ainda em relação a Tarkovsky, já que, por mais que os deem sinais de usarem a ficção científica como plataforma para tratar de dramas humanos, a fascinação de Nolan pelo gênero é bem mais evidente, como fica claro na forma como os dois observam os próprios planetas e estrelas, com Tarkovsky vendo-os com um olhar de admiração, mistério e que remete à Terra ou sugere uma saudade dela, enquanto Nolan os vê sem se demorar muito em planos contemplativos, de forma mais analítica, calculista, como peças em um quebra-cabeça. Além disso, por mais que, como foi citado, o “fantasma” de Cooper lembre os “fantasmas” da esposa falecida de Kelvin em certo nível, Nolan usa o recurso para valorizar o “poder do amor” e as possibilidades de inteligência superior dos humanos, deixando claro o papel da ciência naquilo tudo e como ela pode salvar a Terra. Já Tarkovsky usa isso como base para explorar o interior de Kelvin, com todos os seus traumas, conflitos éticos e incursões do subconsciente, e sempre mantendo uma dose de misticismo e do sobrenatural – ou seja, rejeitando a ciência.


Estando Interstellar no campo das “ficções científicas populistas”, talvez seja mais justa uma comparação com o mestre do gênero, Steven Spielberg. E mesmo essa comparação desfavorece Nolan, já que os filmes de Spielberg nesse estilo mantinham sempre em seu olhar um senso de deslumbre e inocência, como o de uma criança descobrindo um brinquedo novo, o que era até admirável, e até explica a preferência de Spielberg por não fazer de seus filmes quebra-cabeças e manter neles alguns mistérios e pontas soltas. O que é o contrário do que acontece com Nolan, que insiste em oferece a seus espectadores filmes mastigados e calculistas sob uma ilusão de realismo, sem espaço para ambiguidade.

No fim das contas, talvez Nolan "peque" mais pelo excesso de manipulação do que por qualquer outra coisa. O diretor parece querer colocar o espectador numa montanha russa daquelas mais caras do parque da Disney, cheias de curvas e reviravoltas, com efeitos de luz e som espetaculares e coisas pulando na sua direção de tempos em tempos. Mas nem todos gostam de montanhas russas, eu suponho, principalmente quando já se sabe de cor o percurso delas. Talvez Nolan devesse seguir o exemplo de seus personagens e explorar novos ares, novos mundos, talvez um em que o tempo siga seu curso mais devagar. Mesmo seus defensores poderiam agradecer (algum dia), já que mesmo os maiores fãs de montanhas russas sabem que as mais significativas ou melhores viagens que alguém pode fazer são as interiores (ou seja, que se passam dentro da cabeça de cada um), e não as exteriores em si (que indicam deslocamento espacial). 

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