Não é muito
difícil supor o porquê de Clint Eastwood ter se encantado com a história de
Chris Pyle a ponto de produzir este filme. Afinal de contas, Pyle se tornou um
herói de guerra americano fazendo na vida real o que Clint fez durante grande
parte de sua carreira no cinema: atirando e matando friamente os “selvagens”,
caras maus, bandidos ou o que quer que seja que ousam levantar a mão contra a
bandeira americana, sua moral e seus bons cidadãos. O porquê do diretor
retratar esta história apresentando tão pouco senso crítico e tanta
glorificação do herói de guerra é que é surpreendente e decepcionante.
O engraçado
é que Clint acaba fazendo de Pyle um clichê de herói de guerra tão grande que
ele praticamente nos ensina como fazer um herói de guerra. Primeiro é preciso
iniciar o treinamento na infância, claro. Nesta fase, uma cultura armamentista nutrida
ao longo de séculos e séculos faz um pai levar o filho até a floresta para
matar um animal selvagem por puro prazer, como se esta fosse uma das lições
mais importantes do mundo. Ok. Depois o pai ensina uma lição ainda mais
valiosa: está tudo bem se você quiser agredir uma pessoa brutalmente, contanto
que você tenha certeza que ela é um lobo (do mal) que está agredindo seus
colegas/parceiros/irmãos, e contanto que você não seja o que mais apanha no fim
das contas. Ok. Ah, não se pode esquecer de passar na Igreja e pegar (ou
roubar) uma cópia de bolso da Bíblia, afinal não há como ser um bom texano sem
ser temente a Deus.
Até aí já
foi formada uma boa base para ser um grande matador, mas antes disso é preciso
que Pyle se torne um homem. Ou melhor, um caubói - afinal ele é texano –,
daqueles que gostam de montar em cavalos (mesmo que para que isso seja bem
demonstrado sejam necessários efeitos especiais), ouvir música country (clichê
terrível) e ostentar seus cinturões para poder comer mais mulheres, certo?
Afinal de contas um caubói precisa de uma mulher, mas se ela o trair com outro
caubói não tem problema, já que você nunca a amou (não me faça dizer que “um
homem não chora”, Clint) e você conseguiu dar uma de macho alfa da casa e bater
no cara que não tinha nada a ver com a história (pelo menos ele era um caubói
que valorizava seu chapéu).
Mas temos aí
um problema, já que um herói de guerra precisa ser também um homem de família.
Problema resolvido assim que surge Kaya, uma mulher que não pode beber sozinha
em um bar sem precisar ser resgatada das garras de aproveitadores pelo salvador
Pyle, e é tão donzela indefesa que até passa mal depois de algumas doses, já
que não tem bolas suficientes para ficar completamente sóbria e impassível como
Pyle. Ok. Agora Pyle precisa conquistar Kaya, coisa que ele faz sem esforço
mesmo com ela sabendo que é uma péssima ideia namorar um fuzileiro, já que ele
é um macho alfa e as fêmeas não resistem a isso por muito tempo. Não sem
algumas cenas com o uso clássico (porém completamente desnecessário) do bom e
velho “pianinho” e de declarações de amor que soam falsas, claro. Enfim, sendo
uma boa fêmea, Kaya rapidamente cumpre uma de suas principais funções (na
verdade, uma de suas duas funções) dentro da família W.A.S.P. que forma com
Pyle e dentro do filme: gerar filhos e filhas (mas primeiro um filho
primogênito, claro). Sua outra função dentro do filme (já que nenhuma
referência é feita a um possível emprego, pelo que me lembre) é reclamar
incessantemente sobre a presença de Pyle no Iraque, nem que para isto ela tenha
sua atuação reduzida a chorar em praticamente todas as cenas. No entanto, isto
não a torna forte o suficiente para dizer qualquer coisa que seja quando Pyle
diz que seu colega de exército morreu “por causa de uma carta”, ou “porque
desistiu”. Ou para não abandonar suas intenções de se divorciar depois de ouvir
um simples “venha cá” do marido. Ou de demorar mais do que (aparentemente)
alguns meses para dizer que está orgulhosa dele e que ele é um ótimo pai
(depois de passar o filme inteiro dizendo o contrário). Enfim.
Com a
família protegida pela mãe em casa, Pyle pode agora ir para a guerra (não sem
que antes a montagem sugira ridiculamente que o envolvimento – principalmente
sexual – dele com Kaya comprometeu seu desempenho nos treinamentos, afinal é
impossível que a mulher não prejudique o homem de alguma forma). Ah, sim, o
treinamento. É bom notar que aqui Eastwood começa a esboçar algum tipo de
crítica ao mostrar o quanto os métodos de treinamento ao estilo “testosterona
máxima” e “this... is... Sparta!” acabam brutalizando e desumanizando os
soldados. No entanto, o treinamento acaba passando brevemente, e as cenas de Nascido Para Matar (Stanley Kubrick,
1987) que vêm à cabeça assim que começam os gritos e xingamentos dos
instrutores servem para torná-lo até brando e leve em comparação.
Ok, chegamos
na guerra, onde aparentemente os soldados patriotas (em especial Pyle)
acreditam que ao matar iraquianos e destruir suas cidades eles estão combatendo
os terroristas e impedindo-os de atacar o solo americano outra vez. Ok. Desta
forma, o americano que mata mais terroristas é condecorado como herói. Sendo
assim, Pyle logo se torna uma “Lenda”, o que Clint reforça ao mostrá-lo
cumprindo seu trabalho e salvando os indefesos soldados americanos dos
terroristas iraquianos (a maior parte deles aparentando ser louca ou
despreparada). Certo. Mas como todo herói precisa de um vilão, eis que aparece
Mustafa, o sniper iraquiano (na verdade ele é sírio) que “ganhou medalha nas
Olimpíadas” por suas habilidades como atirador, que ele usa para matar os tais
soldados americanos. E é na caracterização de Mustafa que a narrativa fica mais
fortemente maniqueísta. Enquanto Pyle larga sua função de sniper para
corajosamente ajudar os soldados a invadir as casas dos iraquianos mais de
perto (e assim protegê-los melhor, supostamente), Mustafa não só nunca deixa de
ser um sniper como não se importa em matar americanos que estão de costas e/ou
fora de combate (aqueles construindo o muro). Enquanto Pyle se mostra
geralmente humilde e não alimenta muito as gozações/elogios quando lhe chamam
de “Lenda” ou herói, Mustafa divulga vídeos dele mesmo matando soldados
americanos. Como se isso não fosse o suficiente, uma música sombria digna de
vilão de filme de super-herói toca em algumas das cenas em que Mustafa se
prepara para sair à caça, e ele chega até a lamber os beiços (ou coisa
parecida) após uma das mortes, como se tivesse um prazer (quase sexual) com
aquilo. No caso, o perverso aqui me parece ser o diretor por se submeter a tal
nível de maniqueísmo, e não o clichê de terrorista muçulmano maléfico. A coisa
chega a seu ápice no momento em que Pyle finalmente mata Mustafa, quando
Eastwood consegue reviver o “bullet time” (que eu achava que já tinha sido
ultrapassado depois de ser usado em todos os filmes de ação desde Matrix) para dramatizar e intensificar o
efeito da morte do sniper terrível matador de americanos como se esta fosse uma
vitória gloriosa (é uma vitória para Pyle, com certeza, significando o cumprimento de sua missão no Iraque, mas reproduzir este pensamento desta forma é, no mínimo, irresponsável).
Não que eu ache absolutamente impossível elogiar o filme. Algumas das cenas de Pyle sendo
levado a dilemas morais em sua função de sniper são realmente poderosas, em
especial as que envolvem crianças como alvo, principalmente por causa da
entrega do ator Bradley Cooper. Além delas, o momento em que Pyle retorna para casa depois de desistir da guerra me parece ser o ponto alto do filme, quando sua paranoia
causada pela guerra é explorada com mais cuidado. Bons exemplos disso são a cena em que Pyle pensa estar sendo seguido por carros comuns nos
Estados Unidos, quando se assusta ao ouvir o som máquinas inofensivas como um liquidificador (ou coisa parecida), ou quando ele encara uma televisão desligada e só consegue
enxergar tiros e bombas (momento em que a crítica de Eastwood soa mais forte). No entanto, Eastwood explora esta paranoia só até
certo ponto, já que, depois de uma única consulta no psicólogo, Pyle passa a
conviver com veteranos de guerra e aparentemente se cura. É tanto que Pyle não
vê problema nenhum em levar seu próprio filho para caçar, reproduzindo o sistema
que ensina as crianças a matarem desde pequenas sem aparentar nenhum remorso ou
trauma. E aparentemente o problema não era a culpa pelo assassinato de centenas
de iraquianos, mas sim por não ter salvado mais americanos (através de mais
mortes de “selvagens”, obviamente).
De qualquer
forma, é difícil considerar que estes bons momentos esporádicos “salvam” o
filme. Afinal de contas, estamos em 2015. Eu sinceramente gostaria que a esta
altura do campeonato os americanos já tivessem superado sua mania de filmes de
guerra recheados de terroristas muçulmanos perversos, de violência
desnecessária e sem questionamento, de machões balançando sua testosterona pra
lá e pra cá, de heróis de guerra sendo glorificados pela sua bravura, de um
patriotismo cego, e assim por diante. No fim das contas, a mensagem parece ser
que a guerra pode lhe matar e lhe deixar louco, mas mate centenas de
terroristas selvagens nela e tudo ficará mais fácil. E você será um herói. E
americanos amam heróis, como nós todos sabemos (e vemos no epílogo do filme,
que chega a ser de uma grandiosidade vergonhosa).
Mesmo antes de seu lançamento era muito atenta a qualquer notícia deAmerican Sniper, a verdade é que é um filme que mantém você em cativeiro desde que começou. Daqueles filmes onde a mistura de suspense, ação e emotivodad fazer um filme um sucesso.
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