10 de novembro de 2014

Paris, Texas (Wim Wenders, 1984) e o blues


Em sua época, Paris, Texas (1984) foi o filme que Wim Wenders sempre quis fazer. E não só por unir os principais temas presentes no cinema do diretor até aquele momento: errância, solidão, viagens por estradas sem fim e laços afetivos entre pessoas separadas de suas famílias, entre outros. Antes dele, o diretor alemão já tinha filmados outros dois longas nos Estados Unidos que tinham como seu tema principal (ou um dos temas principais) a própria América, Hammett (1982) e O Estado Das Coisas (1982), mas só ficou plenamente satisfeito com a empreitada em Paris, Texas. Isto porque, no filme, Wenders conseguiu, mais do que nunca, realizar – e transpor para a tela – uma viagem ao coração dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que escrevia uma carta de amor ao país cujos mitos e cultura sempre foram objeto de fascínio do diretor.

Além da América, as outras paixões de Wenders eram, desde a adolescência, o cinema e o rock ‘n’ roll, a ponto do alemão ter afirmado em entrevista que “sempre foram um só, meu amor pelo rock e meu amor pelo cinema... sempre estiveram ligados”. A ligação chegou a tal ponto que o diretor realizou um curta (Alabama: 2000 Light Years from Home, 1969) sobre a diferença entre as versões de Bob Dylan e Jimi Hendrix de “All Along The Watchtower”, e um longa (Summer In The City, 1970) sobre como um homem se relaciona com músicas da banda inglesa The Kinks. Como o próprio Wenders disse, “o rock sempre foi tema/sujeito [ele usa a palavra sujet, do francês] dos meus filmes”.

Com o tempo, a obsessão do alemão pelo rock foi levando-o para épocas cada vez mais distantes, e, como todos que pesquisam o rock por tempo suficiente, Wenders descobriu que as origens do rock estão, principalmente, no blues, gênero musical nascido nas comunidades afro-americanas do sul dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX, e acabou sendo de influência essencial não só para o rock como para o jazz, funk, R&B e soul, entre outros gêneros. Esta paixão de Wenders pelo blues está mais clara do que nunca em Paris, Texas, que é, também, um filme sobre (e apaixonado pelo) blues.


Isto porque pode-se dizer que o personagem principal de Paris, Texas, Travis, “has got the blues” (está triste ou depressivo), como diz a expressão. Afinal de contas, Travis, um homem arrasado e determinado a vagar sem rumo pelas estradas e desertos depois de se separar dolorosamente da mulher e do filho, é um tipo de personagem recorrente no blues, aparecendo em vários clássicos como “Going Down The Road Feeling Bad”, “Key To The Highway”, “Ramblin’ On My Mind” e “Walking Blues”.

Para expressar esses sentimentos através de sons, o músico de escolha de Wim Wenders foi Ry Cooder, guitarrista/violonista especializado em músicas de raiz dos Estados Unidos (e de outros países e continentes), principalmente o blues. O diretor queria colaborar com Cooder desde os anos 70 – mais tarde, eles também fariam Buena Vista Social Club (1999) juntos -, quando o músico saiu em carreira solo e passou a ganhar notoriedade pela sua maestria no uso da slide guitar (método de tocar violão ou guitarra tradicional no blues desde a década de 1920, em que se usa um pequeno tubo geralmente feito de vidro ou metal para deslizar sobre as cordas, variando a vibração e tom das notas). Olhando para trás, Wenders parecia querer trabalhar com Cooder desde No Decurso Do Tempo (1976), longa dotado de uma trilha sonora de blues rock fortemente marcada pelo uso da slide.

Para a criação da trilha de Paris, Texas, Wenders escolheu como base uma canção gravada em 1928 pelo cantor e violonista de blues e spirituals (gênero de música folk que deu origem à música gospel) Blind Willie Johnson – um texano, diga-se de passagem -, “Dark Was The Night, Cold Was The Ground”. Marcada por sua expressão transcendental de sofrimento e dor e pelo seu uso eloquente da slide guitar, a canção já tinha sido interpretada por Cooder em seu álbum de estreia, Ry Cooder (1970). A trilha é quase que inteiramente formada por variações de “Dark Was The Night”, com exceção das cenas do bar de beira de estrada no início do filme e do vídeo de Super 8, em que aparece uma versão instrumental de “Canción Mixteca” (no álbum da trilha a canção aparece em versão cantada, com vocais de apoio do próprio ator Harry Dean Stanton), música folk mexicana composta na década de 1910. Apesar da distância geográfica entre as duas canções, a letra de “Canción Mixteca” mostra uma saudade profunda de casa que poderia se encaixar muito bem no blues: “Qué lejos estoy del suelo donde he nacido/inmensa nostalgia invade mi pensamiento/y al verme tan solo y triste cual hoja al viento,/quisiera llorar, quisiera morir de sentimiento".


A música de Cooder para o filme é etérea, atmosférica, com notas que parecem pairar no ar como poeira no deserto, como nas trilhas compostas por Ennio Morricone para os westerns de Sergio Leone. Se no começo do longa tem um personagem principal que decide não se comunicar através de palavras (assim como o próprio Blind Willie Johnson em sua gravação de “Dark Was The Night”, onde ele se limita a alguns gemidos e vocalizações), fica a cargo da expressão lacônica do rosto de Harry Dean Stanton e da música de Cooder para transmitir a dor, a solidão e a tristeza de Travis.

Quando volta para casa, Travis busca reparar os danos causados pelo desentendimento de quatro anos antes e reestabelecer os laços familiares com as duas pessoas que ele mais ama: o filho, Hunter e a mulher, Jane. É aí que o personagem se revela mais do que nunca como personagem de blues. Quando afirmo isso, me refiro ao blues não pela definição costumeira de um homem (negro) americano queixando-se de algo como “minha mulher me deixou, estou sem dinheiro e bla bla bla”, mas sim como uma expressão musical marcada pelo sofrimento, sem dúvidas, mas que tem em sua essência uma tentativa de enfrentamento dos problemas, de externalizar a carga emocional e os sentimentos para melhor lidar com eles, ou, como Albert Murray coloca em seu livro Stomping The Blues, “um ritual de purificação, de limpeza [...] contra maus espíritos”, sejam eles visíveis ou invisíveis.

Assim, as duas jornadas de Travis, primeiro da fronteira entre o Texas e o México até Los Angeles para reestabelecer a relação com Hunter, e depois de Los Angeles até Houston para reestabelecer a relação com Jane (e de Hunter com Jane), seguindo a lógica dos road movies que Wenders tanto ama, se configuram não só como jornadas físicas/geográficas mas também como jornadas internas, espirituais, emocionais, afetivas. Ou seja, rituais de purificação onde Travis tenta lidar com seu próprio fardo afetivo, do qual ele fugiu até antes do irmão encontra-lo, mas que também o puxa de volta depois disso.


No derradeiro encontro na cabine do “motel” entre Travis e Jane, quem também se revela como uma personagem baseada numa poética do blues é a própria Jane, não só por apresentar a mesma errância, impulsividade emotiva e jeito de alguém que guardou um turbilhão de sentimentos para si só por tempo demais, mas justamente por expor esses sentimentos e tentar lidar com seu próprio emocional. Sua fala é trabalhada num tipo de discurso semelhante ao do blues, alicerçado num estilo coloquial e honesto beirando a sentimentalidade que possibilita ao ouvinte/espectador se sensibilizar com o que é colocado e relacionar isso com sua própria vida, num processo de empatia que é essencial ao impacto não só do blues como também do cinema. Nessa hora, cada um dos ouvintes se lembra de suas próprias estórias de solidão, amores que não deram certo e viagens sem rumo pelo mundo afora. Afinal de contas, como o próprio Ry Cooder fala em sua canção “John Lee Hooker For President”, “everybody’s got to have a little blues sometime”.

Ao final do diálogo (e de sua segunda jornada), Travis consegue restabelecer a ligação entre Hunter e Jane, mas decide seguir viajando, sozinho e sem rumo. Apesar de ter atenuar seu sentimento de culpa em relação ao dano causado a Jane e Hunter, Travis acaba sendo incapaz de se livrar por completo dos conflitos com sua própria carga afetiva, ou, principalmente, assumir a responsabilidade de conviver em família com Jane e Hunter. Nessa hora, a trilha de Ry Cooder, depois de perder destaque e aparecer em diversas variações e nuances ao longo do filme, retorna mais blueseira e parecida com a versão original de “Dark Was The Night” do que nunca. Além de expressar o sentimento de um Travis talvez mais solitário do que nunca, a música parece até sentir empatia por Travis, como que lamentando junto com ele e oferecendo uma espécie de abrigo emocional feito de som. Nessa hora, Wenders sentiu que a música “capturou tão exatamente o espírito do filme” que “era como se Ry estivesse refilmando o filme com sua guitarra”.


Anos mais tarde, em 2003, Wim Wenders dirigiu um documentário sobre o blues intitulado The Soul of a Man, focado em três artistas, sendo um deles Blind Willie Johnson. Como conta a primeira cena do documentário, a canção “Dark Was The Night” foi enviada ao espaço sideral em discos contendo outras 26 canções e amostras de línguas e lugares da Terra, representando a como um representativo da diversidade de imagens e culturas do planeta. Os discos foram armazenados dentro de duas naves exploratórias que partiram em 1977, para ser apreciado por algum ser extraterrestre que possa o interceptar. Da mesma forma (se o mesmo fosse feito com filmes), Paris, Texas é também um desses filmes para se mandar para o espaço, para que os alienígenas conheçam por sua profunda sensibilidade e apuro estético. De preferência com a qualidade da cópia em 4K exibida gloriosamente no São Luiz. 

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