Em
sua época, Paris, Texas (1984) foi o
filme que Wim Wenders sempre quis fazer. E não só por unir os principais temas
presentes no cinema do diretor até aquele momento: errância, solidão, viagens
por estradas sem fim e laços afetivos entre pessoas separadas de suas famílias,
entre outros. Antes dele, o diretor alemão já tinha filmados outros dois longas
nos Estados Unidos que tinham como seu tema principal (ou um dos temas
principais) a própria América, Hammett
(1982) e O Estado Das Coisas (1982),
mas só ficou plenamente satisfeito com a empreitada em Paris, Texas. Isto porque, no filme, Wenders conseguiu, mais do que
nunca, realizar – e transpor para a tela – uma viagem ao coração dos Estados
Unidos, ao mesmo tempo em que escrevia uma carta de amor ao país cujos mitos e
cultura sempre foram objeto de fascínio do diretor.
Além
da América, as outras paixões de Wenders eram, desde a adolescência, o cinema e
o rock ‘n’ roll, a ponto do alemão ter afirmado em entrevista que “sempre foram
um só, meu amor pelo rock e meu amor pelo cinema... sempre estiveram ligados”. A
ligação chegou a tal ponto que o diretor realizou um curta (Alabama: 2000 Light Years from Home,
1969) sobre a diferença entre as versões de Bob Dylan e Jimi Hendrix de “All
Along The Watchtower”, e um longa (Summer
In The City, 1970) sobre como um homem se relaciona com músicas da banda
inglesa The Kinks. Como o próprio Wenders disse, “o rock sempre foi
tema/sujeito [ele usa a palavra sujet,
do francês] dos meus filmes”.
Com
o tempo, a obsessão do alemão pelo rock foi levando-o para épocas cada vez mais
distantes, e, como todos que pesquisam o rock por tempo suficiente, Wenders
descobriu que as origens do rock estão, principalmente, no blues, gênero musical
nascido nas comunidades afro-americanas do sul dos Estados Unidos nas primeiras
décadas do século XX, e acabou sendo de influência essencial não só para o rock
como para o jazz, funk, R&B e soul, entre outros gêneros. Esta paixão de
Wenders pelo blues está mais clara do que nunca em Paris, Texas, que é, também, um filme sobre (e apaixonado pelo) blues.
Isto
porque pode-se dizer que o personagem principal de Paris, Texas, Travis, “has
got the blues” (está triste ou depressivo), como diz a expressão. Afinal de
contas, Travis, um homem arrasado e determinado a vagar sem rumo pelas estradas
e desertos depois de se separar dolorosamente da mulher e do filho, é um tipo
de personagem recorrente no blues, aparecendo em vários clássicos como “Going
Down The Road Feeling Bad”, “Key To The Highway”, “Ramblin’ On My Mind” e
“Walking Blues”.
Para
expressar esses sentimentos através de sons, o músico de escolha de Wim Wenders
foi Ry Cooder, guitarrista/violonista especializado em músicas de raiz dos
Estados Unidos (e de outros países e continentes), principalmente o blues. O
diretor queria colaborar com Cooder desde os anos 70 – mais tarde, eles também
fariam Buena Vista Social Club (1999)
juntos -, quando o músico saiu em carreira solo e passou a ganhar notoriedade
pela sua maestria no uso da slide
guitar (método de tocar violão ou guitarra tradicional no blues desde a
década de 1920, em que se usa um pequeno tubo geralmente feito de vidro ou
metal para deslizar sobre as cordas, variando a vibração e tom das notas).
Olhando para trás, Wenders parecia querer trabalhar com Cooder desde No Decurso Do Tempo (1976), longa dotado
de uma trilha sonora de blues rock fortemente marcada pelo uso da slide.
Para
a criação da trilha de Paris, Texas,
Wenders escolheu como base uma canção gravada em 1928 pelo cantor e violonista
de blues e spirituals (gênero de música folk que deu origem à música gospel) Blind Willie Johnson – um texano, diga-se
de passagem -, “Dark Was The Night, Cold Was The Ground”. Marcada por sua expressão transcendental de sofrimento e dor e pelo seu uso
eloquente da slide guitar, a canção já tinha sido interpretada por Cooder em seu álbum de estreia, Ry Cooder (1970). A trilha é quase que inteiramente formada por
variações de “Dark Was The Night”, com exceção das cenas do bar de beira de
estrada no início do filme e do vídeo de Super 8, em que aparece uma versão instrumental
de “Canción Mixteca” (no álbum da trilha a canção aparece em versão cantada,
com vocais de apoio do próprio ator Harry Dean Stanton), música folk mexicana
composta na década de 1910. Apesar da distância geográfica entre as duas
canções, a letra de “Canción Mixteca” mostra uma saudade profunda de casa que
poderia se encaixar muito bem no blues: “Qué
lejos estoy del suelo donde he nacido/inmensa nostalgia invade mi pensamiento/y
al verme tan solo y triste cual hoja al viento,/quisiera llorar, quisiera morir
de sentimiento".
A
música de Cooder para o filme é etérea, atmosférica, com notas que parecem pairar
no ar como poeira no deserto, como nas trilhas compostas por Ennio Morricone
para os westerns de Sergio Leone. Se
no começo do longa tem um personagem principal que decide não se comunicar
através de palavras (assim como o próprio Blind Willie Johnson em sua gravação
de “Dark Was The Night”, onde ele se limita a alguns gemidos e vocalizações),
fica a cargo da expressão lacônica do rosto de Harry Dean Stanton e da música
de Cooder para transmitir a dor, a solidão e a tristeza de Travis.
Quando
volta para casa, Travis busca reparar os danos causados pelo desentendimento de
quatro anos antes e reestabelecer os laços familiares com as duas pessoas que
ele mais ama: o filho, Hunter e a mulher, Jane. É aí que o personagem se revela
mais do que nunca como personagem de blues. Quando afirmo isso, me refiro ao
blues não pela definição costumeira de um homem (negro) americano queixando-se
de algo como “minha mulher me deixou, estou sem dinheiro e bla bla bla”, mas sim como uma expressão musical marcada pelo sofrimento, sem dúvidas, mas que tem em sua
essência uma tentativa de enfrentamento dos problemas, de externalizar a carga emocional e os sentimentos para melhor lidar com eles, ou, como Albert Murray coloca em seu
livro Stomping The Blues, “um ritual
de purificação, de limpeza [...] contra maus espíritos”, sejam eles visíveis ou invisíveis.
Assim,
as duas jornadas de Travis, primeiro da fronteira entre o Texas e o México até
Los Angeles para reestabelecer a relação com Hunter, e depois de Los Angeles
até Houston para reestabelecer a relação com Jane (e de Hunter com Jane),
seguindo a lógica dos road movies que
Wenders tanto ama, se configuram não só como jornadas físicas/geográficas mas
também como jornadas internas, espirituais, emocionais, afetivas. Ou seja,
rituais de purificação onde Travis tenta lidar com seu próprio fardo afetivo,
do qual ele fugiu até antes do irmão encontra-lo, mas que também o puxa de
volta depois disso.
No
derradeiro encontro na cabine do “motel” entre Travis e Jane, quem também se
revela como uma personagem baseada numa poética do blues é a própria Jane, não
só por apresentar a mesma errância, impulsividade emotiva e jeito de alguém que
guardou um turbilhão de sentimentos para si só por tempo demais, mas justamente
por expor esses sentimentos e tentar lidar com seu próprio emocional. Sua fala
é trabalhada num tipo de discurso semelhante ao do blues, alicerçado num estilo
coloquial e honesto beirando a sentimentalidade que possibilita ao
ouvinte/espectador se sensibilizar com o que é colocado e relacionar isso com
sua própria vida, num processo de empatia que é essencial ao impacto não só do
blues como também do cinema. Nessa hora, cada um dos ouvintes se lembra de suas
próprias estórias de solidão, amores que não deram certo e viagens sem rumo
pelo mundo afora. Afinal de contas, como o próprio Ry Cooder fala em sua canção
“John Lee Hooker For President”, “everybody’s
got to have a little blues sometime”.
Ao
final do diálogo (e de sua segunda jornada), Travis consegue restabelecer a
ligação entre Hunter e Jane, mas decide seguir viajando, sozinho e sem rumo. Apesar
de ter atenuar seu sentimento de culpa em relação ao dano causado a Jane e
Hunter, Travis acaba sendo incapaz de se livrar por completo dos conflitos com
sua própria carga afetiva, ou, principalmente, assumir a responsabilidade de
conviver em família com Jane e Hunter. Nessa hora, a trilha de Ry Cooder,
depois de perder destaque e aparecer em diversas variações e nuances ao longo
do filme, retorna mais blueseira e parecida com a versão original de “Dark Was
The Night” do que nunca. Além de expressar o sentimento de um Travis talvez
mais solitário do que nunca, a música parece até sentir empatia por Travis,
como que lamentando junto com ele e oferecendo uma espécie de abrigo emocional
feito de som. Nessa hora, Wenders sentiu que a música “capturou tão exatamente
o espírito do filme” que “era como se Ry estivesse refilmando o filme com sua
guitarra”.
Anos
mais tarde, em 2003, Wim Wenders dirigiu um documentário sobre o blues
intitulado The Soul of a Man, focado
em três artistas, sendo um deles Blind Willie Johnson. Como conta a primeira cena do documentário, a canção “Dark Was The Night” foi enviada ao espaço sideral em
discos contendo outras 26 canções e amostras de línguas e lugares da Terra, representando
a como um representativo da diversidade de imagens e culturas do planeta. Os
discos foram armazenados dentro de duas naves exploratórias que partiram em
1977, para ser apreciado por algum ser extraterrestre que possa o interceptar. Da
mesma forma (se o mesmo fosse feito com filmes), Paris, Texas é também um desses filmes para se mandar para o
espaço, para que os alienígenas conheçam por sua profunda sensibilidade e apuro
estético. De preferência com a qualidade da cópia em 4K exibida gloriosamente
no São Luiz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário