“A vida é como uma espuma, e vocês tem
que se doar como o mar”. A frase, dita por Luisa ao final de E Tua Mãe Também (Alfonso Cuarón, 2001) como alguém
que dá uma lição de vida do alto de sua sabedoria, acaba destoando um pouco do
resto do filme por ser a única parte em que ele aproxima de frases de efeito ou
grandes verdades, mas resume bem o espírito do longa de Alfonso Cuarón. Em sua
viagem em direção ao litoral mexicano, os três protagonistas, Tenoch, Julio e
Luisa, exploram ao máximo suas amizades, liberdades e sexualidades, em
trajetórias paralelas que lembram a história de Ícaro em suas buscas impetuosas
e ambiciosas por liberdade e glória seguidas de decadência e destruição.
Assim como em inúmeros road movies, a jornada dos três começa
por uma busca por liberdade, mas por razões diferentes. Os inseparáveis Tenoch
e Julio são caracterizados desde o começo do filme como adolescentes
irresponsáveis, que riem dos peidos uns dos outros e escondem o cheiro de
maconha quando os pais chegam em casa. Para eles, a viagem é uma oportunidade
de fugir das amarras dos pais, e também de participar de uma última grande
aventura antes da faculdade. Para Luisa, a viagem é uma maneira de escapar da
convivência sufocante com o marido, que acabou de traí-la, e talvez tentar uma
última aventura irresponsável antes que seja tarde demais.
Mas essa é só a superfície, de certa
forma. O mais interessante é a maneira como essa busca de liberdade é expressa
através da sexualidade dos personagens de forma franca e aberta, com ela não
sendo explorada por si só ou para chamar a atenção, e sim para ajudar na
construção dos personagens e no estabelecimento da relação entre eles. Este
processo já começa nas duas primeiras cenas, onde tanto Julio quanto Tenoch
transam de maneira desajeitada e apressada com suas namoradas, sem demonstrar
preocupação alguma com o prazer delas. Por outro lado, Luisa é retratada como
recatada e vulnerável entre os dois adolescentes a princípio, até por causa da
“ausência” do marido. No entanto, ao transar tanto com Julio quanto com Tenoch
e depois passar a lhes dar lições sexuais, Luisa não só se estabelece como a
dominadora entre os três como também acirra o conflito no relacionamento de
Tenoch e Julio, criando uma disputa para ver quem é mais “machão” e irá tomar
Luisa para si entre eles, o que é prontamente ironizado, já que nenhum dos dois
consegue transar com ela por mais de alguns segundos. Dentro deste quadro, até
uma simples discussão entre eles sobre os méritos do chamado “fio terra” vira
uma forma de colocar Luisa como mais madura que os dois – e portanto dominante.
Em paralelo, a relação de amizade entre
Tenoch e Julio vai ficando cada vez mais estreita e tensa no campo sexual,
também desde o início do filme, quando eles se masturbam juntos na piscina e se
veem nus no vestiário de um clube. Até o fato de eles transarem um com a
namorada do outro ajuda a reforçar essa ideia de proximidade e compartilhamento
no campo sexual. Essas duas trajetórias sexuais paralelas acabam se combinando
no final do filme, na cena no ménage a trois entre os protagonistas, quando
não só Luisa exerce seu controle sobre os dois ao convencê-los a transar com
ela ao mesmo tempo – mesmo depois dela mesmo tê-los proibido de fazer isso -,
como Tenoch e Julio acabam se beijando e participando do ato sem problemas. Esse
clímax conjunto se torna mais dramático quando o espectador descobre mais tarde
que Luisa morreu de câncer um mês depois do fim da viagem, e que Tenoch e Julio
se afastaram definitivamente – o que reforça o lado machista e homofóbico dos
dois, estabelecendo a viagem como um momento de libertação total, mas também de
destruição e encerramento.
Voltando ao desenvolvimento do filme como
road movie, é importante ressaltar
que a viagem retratada acontece dentro de estradas mexicanas, envolvendo
pessoas mexicanas e assim por diante (com a exceção, claro, de Luisa, que fica
como turista). Esse enquadramento da cor local não se dá só através da figura
de paisagens, mas principalmente através da figura de um narrador observador e
onisciente. A forma mais evidente desse narrador se manifestar é através de voice-overs, que geralmente fornecem
informações sobre o trio de protagonistas além das já vistas na tela, seja
revelando o que eles estão pensando, dissecando seus contextos sociais e
vivências ou reforçando suas ligações com personagens secundários, de uma forma
que ao mesmo tempo aproxima o espectador dos personagens e o afasta deles –
devido ao tom distante e ligeiramente irônico dos comentários. Mas os voice-overs mais preciosos são aqueles
que enquadram os protagonistas e sua jornada dentro do México e de seu povo.
Mas este não é um México estereotipado, até porque os clichês clássicos de
cultura mexicana como mariachis e sombreros aparecem justamente em uma
cena que se busca satirizar a superficialidade da alta sociedade mexicana. O
México para o qual o narrador vai se voltar é o dos pobres, das pessoas de vida
simples do interior afetadas pelo avanço da máquina do capitalismo, das vítimas
de acidentes de trânsito evitáveis, de um grupo de porcos que escapam de um
matadouro, e assim por diante, mostrando humanismo e até carinho por esse lado
esquecido do México.
Visualmente, esta intenção do narrador é
representada pelo trabalho do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, que já
prevê a câmera em constante movimento de filmes que faria com Cuarón no futuro,
como Gravidade (2013) e Filhos da Esperança (2006). O olho de
Lubezki (ou do narrador do filme) permanece sempre inquieto, à procura de
algumas dessas facetas do ignoradas do México, e são particularmente
interessantes são os planos-sequência em que a câmera “esquece” os
protagonistas e passa a observar esses mexicanos anônimos que estão a apenas
alguns passos de distância dos personagens principais, mas que ficariam
completamente fora de foco de acordo com o estilo de narrativa mais tradicional
ou comum no cinema de ficção, mas que aproximam o filme de um estilo mais
documental. A partir desses momentos, fica claro que a câmera-narrador segue
sua própria viagem pelo México, livre para pegar curvas e procurar histórias
dignas de serem contadas, nem que só por alguns segundos.
No fim das contas, essas buscas por
liberdade e exploração sexual dos protagonistas e por um olhar mais atento a um
lado esquecido do México do narrador se combinam e enriquecem umas às outras ao
longo do filme. Assim, a jornada dos personagens acaba sendo também uma jornada
de descobrimento deles mesmos dentro do México, e de aspectos ocultos deste
país para o narrador (e consequentemente para o espectador). E o que é mais
importante: com exceção dos membros da alta sociedade mexicana ironizados na
cena do casamento, o filme não parece fazer nenhum tipo de julgamento. Dos
porcos fujões à velhinha que dança cumbia, todos merecem atenção. Afinal, todos
compartilham de estradas do mesmo México.
Excelente análise! Parabéns!
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