Ao longo da história do blues e
da música folk (e mais tarde do R&B e do rock dos anos 50 e do blues rock,
etc), o trem tem sido uma de suas figuras mais recorrentes. Não só como
indicação de deslocamento mas também como sinal de escapatória e mudança, de
jornada pessoal/espiritual, ou de nostalgia pela vida ou pelas pessoas que
foram embora ou deixadas para trás. Neste filme, o também é figura recorrente e
importante, como fica evidente no título, que referencia uma das canções mais
famosas de Elvis Presley. Assim, o trem marca presença não só visualmente (seja
levando os personagens, em segundo plano ou aparecendo sozinho), mas também
através de seus sons característicos, pairando como uma presença quase
fantasmagórica sobre a cidade de Memphis, no Tenessee, onde se passa a
narrativa.
Como num trem e seus vagões, o
filme é dividido em três blocos: no primeiro, um casal de jovens japoneses faz
um tour por Memphis, buscando o espírito e a história da cidade que gerou
gigantes do rock dos anos 1950 como Carl Perkins, Elvis Presley, Roy Orbinson e
Johnny Cash; no segundo, uma viúva italiana e uma mulher recém que acabou de
terminar com o marido dividem um quarto de hotel em meio a estórias sobre o
fantasma de Elvis; no terceiro, dois colegas que acabaram de ser demitidos
vagam bêbados pela noite de Memphis enquanto o cunhado de um deles é arrastado
a contragosto.
Em todos os três blocos, os
personagens são afetados por esse trem de uma forma ou de outra. Para o casal
de japoneses, é uma forma não só de fazer um tour musical, mas também de se
aventurar pela cultura americana de um jeito que uma viagem estéril e impessoal
de avião nunca poderia proporcionar. Não é à toa que a personagem que mais
destoa dos demais, a viúva italiana, só viaja de avião. Para Dee Dee (que
acabou de se separar de seu marido, Johnny), é uma chance de recomeço longe do parceiro
louco. Já para Johnny (interpretado por Joe Strummer, que mostra ser um ator
mais do que aceitável) e seu cunhado Charlie, a situação se inverte: o trem
leva para longe suas pessoas queridas, e apesar de passar perto, os deixa
presos à situação complicada em que se encontram.
Outra figura importante da música
americana essencial para o filme é Elvis Presley, o Rei do Rock em pessoa – ou “Elbissê”,
como falam os japoneses. Afinal de contas, o filme se passa em Memphis, cidade
natal do Rei, um lugar onde seu fantasma parece pairar por todos os cantos.
Assim como com o trem, todos os personagens são afetados por Elvis de alguma
maneira, seja ouvindo “Blue Moon” no rádio ou visitando sua antiga casa em
Graceland. Mas as reverberações do Rei no filme vão além de um simples ar de “Elvis
não morreu”. De certa forma, ele evoca com ele toda uma atmosfera dos anos
1950, evidente nas partes aparentemente esquecidas e velhas (mas cheias de
história) da cidade por onde os personagens transitam. Essa atmosfera também se
faz presente na tensão racial ainda existente na cidade, com bares e bairros só
para negros e um hotel com funcionários negros mas que tem quadros de Elvis nos
quartos porque é propriedade de um branco. Além disso, a música do Rei reforça
o lado rebelde de Johnny (que ironicamente é chamado de Elvis, mesmo sem
parecer com ele), e embala o amor do casal japonês – como já fez com inúmeros
outros casais.
Todas essas evocações permeiam
uma narrativa dividida em três blocos que tem suas ações ocorridas
aproximadamente no mesmo período de tempo e com personagens, lugares e
elementos que se cruzam e se completam (o Cadillac branco por onde o casal
japonês passa sem perceber, por exemplo, só ganha destaque quando é visto por
Johnny). Com isso, a intenção de Jarmusch é evitar um eventual ritmo de suspense
e clímax que poderia surgir numa montagem intercalada. Não que não haja certa
construção de expectativa e suspense no filme. Isso é inevitável, já que alguns
fatos apresentados numa determinada parte só são esclarecidos na parte
seguinte. Por mais que esses truques sejam atraentes, Jarmusch prefere dar a
cada um dos blocos seu ritmo próprio, cadenciado, tão casual que parece até
lento, para assim deixa-los respirar.
Essa narrativa multifacetada é
protagonizada, mais uma vez, por personagens disfuncionais, deslocados, levemente
melancólicos, hipsters, mas com um
senso próprio de elegância (hipness, coolness, enfim). Porém, o fato deles
não serem tão carismáticos quanto em outros filmes de Jarmusch podem fazer esta
parecer uma obra menor do diretor. Seu maior trunfo está em explorar mitos da
música americana (como Greil Marcus no livro homônimo), transpondo-os para um momento
mais atual com destreza, afeto, e uma grande dose da costumeira nostalgia
(expressa na fala da japonesa, que diz preferir a velha estação de Memphis pois
ela possui “atmosfera”, ou do japonês que reclama que Yokohama é Memphis com
60% a mais de prédios... mas sem a mesma alma).
P.S.:
é impossível terminar uma crítica a este filme sem antes citar o grande
Screamin’ Jay Hawkins. Se antes ele aparecia como parte essencial da trilha
sonora em Estranhos No Paraíso
(1984), desta vez ele é um recepcionista de hotel com ares de bem-vivido e
misterioso, e uma risada hilária. Mesmo não sendo ator, Hawkins rouba todas as
cenas em que aparece com seu traje “elegante” vermelho e preto e sua voz grave
e pausada. Ele voltaria a colaborar com Jarmusch em Uma Noite Sobre A Terra
(1991), como parte da trilha sonora.
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