16 de setembro de 2014

Trem Mistério (Jim Jarmusch, 1989)




Ao longo da história do blues e da música folk (e mais tarde do R&B e do rock dos anos 50 e do blues rock, etc), o trem tem sido uma de suas figuras mais recorrentes. Não só como indicação de deslocamento mas também como sinal de escapatória e mudança, de jornada pessoal/espiritual, ou de nostalgia pela vida ou pelas pessoas que foram embora ou deixadas para trás. Neste filme, o também é figura recorrente e importante, como fica evidente no título, que referencia uma das canções mais famosas de Elvis Presley. Assim, o trem marca presença não só visualmente (seja levando os personagens, em segundo plano ou aparecendo sozinho), mas também através de seus sons característicos, pairando como uma presença quase fantasmagórica sobre a cidade de Memphis, no Tenessee, onde se passa a narrativa.

Como num trem e seus vagões, o filme é dividido em três blocos: no primeiro, um casal de jovens japoneses faz um tour por Memphis, buscando o espírito e a história da cidade que gerou gigantes do rock dos anos 1950 como Carl Perkins, Elvis Presley, Roy Orbinson e Johnny Cash; no segundo, uma viúva italiana e uma mulher recém que acabou de terminar com o marido dividem um quarto de hotel em meio a estórias sobre o fantasma de Elvis; no terceiro, dois colegas que acabaram de ser demitidos vagam bêbados pela noite de Memphis enquanto o cunhado de um deles é arrastado a contragosto.

Em todos os três blocos, os personagens são afetados por esse trem de uma forma ou de outra. Para o casal de japoneses, é uma forma não só de fazer um tour musical, mas também de se aventurar pela cultura americana de um jeito que uma viagem estéril e impessoal de avião nunca poderia proporcionar. Não é à toa que a personagem que mais destoa dos demais, a viúva italiana, só viaja de avião. Para Dee Dee (que acabou de se separar de seu marido, Johnny), é uma chance de recomeço longe do parceiro louco. Já para Johnny (interpretado por Joe Strummer, que mostra ser um ator mais do que aceitável) e seu cunhado Charlie, a situação se inverte: o trem leva para longe suas pessoas queridas, e apesar de passar perto, os deixa presos à situação complicada em que se encontram.

Outra figura importante da música americana essencial para o filme é Elvis Presley, o Rei do Rock em pessoa – ou “Elbissê”, como falam os japoneses. Afinal de contas, o filme se passa em Memphis, cidade natal do Rei, um lugar onde seu fantasma parece pairar por todos os cantos. Assim como com o trem, todos os personagens são afetados por Elvis de alguma maneira, seja ouvindo “Blue Moon” no rádio ou visitando sua antiga casa em Graceland. Mas as reverberações do Rei no filme vão além de um simples ar de “Elvis não morreu”. De certa forma, ele evoca com ele toda uma atmosfera dos anos 1950, evidente nas partes aparentemente esquecidas e velhas (mas cheias de história) da cidade por onde os personagens transitam. Essa atmosfera também se faz presente na tensão racial ainda existente na cidade, com bares e bairros só para negros e um hotel com funcionários negros mas que tem quadros de Elvis nos quartos porque é propriedade de um branco. Além disso, a música do Rei reforça o lado rebelde de Johnny (que ironicamente é chamado de Elvis, mesmo sem parecer com ele), e embala o amor do casal japonês – como já fez com inúmeros outros casais.

Todas essas evocações permeiam uma narrativa dividida em três blocos que tem suas ações ocorridas aproximadamente no mesmo período de tempo e com personagens, lugares e elementos que se cruzam e se completam (o Cadillac branco por onde o casal japonês passa sem perceber, por exemplo, só ganha destaque quando é visto por Johnny). Com isso, a intenção de Jarmusch é evitar um eventual ritmo de suspense e clímax que poderia surgir numa montagem intercalada. Não que não haja certa construção de expectativa e suspense no filme. Isso é inevitável, já que alguns fatos apresentados numa determinada parte só são esclarecidos na parte seguinte. Por mais que esses truques sejam atraentes, Jarmusch prefere dar a cada um dos blocos seu ritmo próprio, cadenciado, tão casual que parece até lento, para assim deixa-los respirar.

Essa narrativa multifacetada é protagonizada, mais uma vez, por personagens disfuncionais, deslocados, levemente melancólicos, hipsters, mas com um senso próprio de elegância (hipness, coolness, enfim). Porém, o fato deles não serem tão carismáticos quanto em outros filmes de Jarmusch podem fazer esta parecer uma obra menor do diretor. Seu maior trunfo está em explorar mitos da música americana (como Greil Marcus no livro homônimo), transpondo-os para um momento mais atual com destreza, afeto, e uma grande dose da costumeira nostalgia (expressa na fala da japonesa, que diz preferir a velha estação de Memphis pois ela possui “atmosfera”, ou do japonês que reclama que Yokohama é Memphis com 60% a mais de prédios... mas sem a mesma alma).


P.S.: é impossível terminar uma crítica a este filme sem antes citar o grande Screamin’ Jay Hawkins. Se antes ele aparecia como parte essencial da trilha sonora em Estranhos No Paraíso (1984), desta vez ele é um recepcionista de hotel com ares de bem-vivido e misterioso, e uma risada hilária. Mesmo não sendo ator, Hawkins rouba todas as cenas em que aparece com seu traje “elegante” vermelho e preto e sua voz grave e pausada. Ele voltaria a colaborar com Jarmusch em Uma Noite Sobre A Terra (1991), como parte da trilha sonora. 

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