26 de agosto de 2014

Amantes Eternos (Jim Jarmusch, 2013)


Meu Deus, será que Jim Jarmusch resolveu finalmente fazer jus aos seus cabelos eternamente brancos e se tornou um velhinho ranzinza? Não que filme seja chato ou antiquado, longe disso. Aos 60 anos, o diretor se mantém absurdamente cool, hip, entre outros adjetivos semelhantes. É que, mais do que uma “estória de vampiros”, este é um filme profundamente nostálgico, saudoso. E que forma melhor de tratar de nostalgia do que através de vampiros, esses seres soturnos, melancólicos, que tratam o passado com reverência e saudosismo e o futuro com desdém e desesperança?

Esta nostalgia, tão preciosa ao filme, é tratada de diversas formas. Em primeiro lugar, ela está na forma do casal de vampiros de se referir ao presente, sempre como uma época estragada pela estupidez dos “zumbis” (forma sarcástica e resignada de se referir aos humanos), que fazem guerras por motivos mesquinhos e contaminam a água e seu próprio sangue, só para citar algumas coisas. Esta visão do presente como algo decadente também está no próprio olhar de Jarmusch sobre as cidades principais do filme: Detroit e Tangier. De certa forma, os travellings laterais com a câmera passeando e vendo a cidade pelo vidro do carro são os mesmos de Uma Noite Sobre A Terra (1991) e do início de Daunbailó (1986), porém mais carregadas de um afeto pelas partes mais esquecidas das cidades, com marcas visíveis da passagem do tempo. Obscuras, sim, mas ainda vivas e pulsando história. De fato, as duas cidades são colocadas como lugares que já ultrapassaram seu auge, mas ainda guardam traços da beleza e graça de outrora, como os próprios vampiros.

Além disso, o casal de vampiros, formado por Adam (Tom Hiddlestone), uma versão menos tímida e mais sombria de Jimmy Page (com o truque do arco de violino na guitarra e tudo) e Eve (Tilda Swinton),  uma mulher carinhosa e apreciadora da literatura e da natureza, transparece nostalgia também no seu gosto pela arte - principalmente a música - e por instrumentos musicais antigos. Mas a arte não é a única coisa lembrada com saudosismo, já que Adam menciona, em tom melancólico, o fato do lugar onde Henry Ford fez seu primeiro modelo ter se tornado um suntuoso teatro e depois um estacionamento. Assim, a crítica se estende ao fato de os “zumbis” não tratarem com respeito seu próprio passado, ao contrário do que fazem os vampiros, se lembrando de coisas que aconteceram séculos atrás. Essa nostalgia acaba sendo também uma forma de escapismo, com o casal frequentemente remetendo ao passado, o que os faz esquecer do futuro obscuro à frente, e os afasta do presente tedioso.

Assim, a irmã mais nova de Eve, Ava (Mia Wasikowska), aparece como uma antítese dos traços e ideias do casal. Impetuosa e irresponsável como uma adolescente, ela faz o casal parecer mais maduro por contraste ao desrespeitar a “ética dos vampiros” e matar Ian sem motivo plausível. Somando-se isso à suas referências ao Youtube e a downloads e pode-se inferir que ela representa parte do que há de pior na era digital, não demonstrando nenhum interesse pela erudição e pela apreciação da arte, tão importante à sua irmã e ao seu cunhado. A própria cidade que ela escolheu para morar, Los Angeles, é um reflexo irônico de sua imaturidade. L.A., lar de Hollywood e suas celebridades e holofotes, é o oposto de Detroit e Tangier em termos de nostalgia e relação com o passado – ao contrário do que o Oscar faz parecer nos últimos anos. A irresponsabilidade de Ava e o fato de ela ser o que mais chega perto de causar a morte do casal (mesmo que indiretamente) mostra uma clara predileção do diretor por Adam e Eve, e acaba sendo uma sarcástica cutucada do diretor contra a indústria do cinema mainstream americano, que ele claramente desdenha.

Esse tipo de sarcasmo ácido está presente ao longo de todo o filme, e é um dos fatores que o impedem de se tornar apenas mais um lamento saudoso. O exemplo mais óbvio é de quando o corpo de Ian é queimado no ácido, levando Eve a exclamar: “wow, that was visual”. A piada funciona justamente porque não se assiste um filme de Jarmusch com a expectativa de se ver uma cena com efeitos especiais tão destacados. O diretor também brinca com convenções ao mostrar um trecho de clipe de TV de 1975 com a música “Soul Dracula”, com um vampiro caricatural e bizarro, mas não muito longe das bizarrices que temos visto associadas ao mito dos vampiros nos últimos anos. Outra cutucada irônica vem quando Adam diz esperar que a ótima cantora libanesa (Yasmine Hamdan) que ele vê num bar não fique famosa, pois “ela é boa demais pra isso”. Afinal de contas, por mais que Jarmusch tenha se mantido sempre marginal, a postura de Adam em relação à sua música é extrema até mesmo para os padrões do diretor.

Esse posicionamento forte de Adam em relação à música exemplifica bem não só a importância que ela tem para ele, mas para o filme como um todo também. Aqui, a música aparece como uma forma de mostrar nostalgia (tanto Adam quanto Eve adoram a música pop e o rock dos anos 1950/60/70 mais que qualquer música contemporânea, com exceção de Jack White, que sempre pareceu fora de seu tempo mesmo), de expressão pessoal (principalmente para Adam) e de escapismo (Adam se fecha em seu mundo musical para tentar superar o tédio de se viver por séculos e séculos e séculos). A trilha sonora também é essencial para os close-ups em câmera lenta de quando os vampiros tomam sangue (entre as melhores cenas do filme), com os riffs hipnóticos e distorcidos reforçando a ideia mostrada na expressão dos atores de que, para os vampiros, beber sangue é perder a noção de tempo e espaço e se entregar a um vício, em êxtase, como se eles fossem viciados em drogas.

No geral, a trilha sonora junta bem o barulho industrial sujo de Detroit com os sons misteriosos e elegantes de Tangiers, atuando como mais uma forma de união entre Eve e Adam – além da separação de cores entre branco/amarelo para Eve e preto/azul-escuro para Adam que os fazem parecer representações de yin-yang. É um plano de fundo musical atmosférico, e, acima de tudo, essencial ao filme e ao que o torna memorável.

Outro fator que se destaca é o senso de romantismo – primeiro no sentido artístico da palavra - nos personagens principais, evidente no seu escapismo como forma de fugir da realidade, na sua postura contra o industrialismo descontrolado e na importância dada aos sentimentos “verdadeiros” (mostrada no discurso anti-suicídio de Eve). Pegando pelo sentido mais comum, a relação dos dois parece autenticamente amorosa e fiel, ainda que complicada, ao contrário de outros casais de vampiros de filmes, que geralmente parecem engessados e falsos, ou com um claro domínio do homem sobre a mulher, o que não ocorre aqui. Jarmusch até se permite brincar com o clichê dos vampiros como senhores de modos antiquados e corteses na cena do reencontro, mas a verdade é que os personagens principais recebem uma construção justa, ou pelo menos melhor que em outros filmes do gênero.

No fim das contas, as mordidas que os salvam também são românticas, não só por serem feitas no modo da rua, como antigamente (“isso é tão século XV”), mas também por serem possibilitadas pela possibilidade de amor do casal marroquino, e por selá-lo como mais um par de “amantes eternos” através dos séculos. Numa época em que parece antiquado e ultrapassado um casal passar mais de dez anos juntos, não há como isso não parecer romântico, o que é complementado com o “excusez moi” de Eve antes do ataque.

Por mais que o ato final e o filme como um todo mostrem falta de consideração com os “zumbis” e suas vidas, a tentativa de Adam ver sua arte ser lembrada ao longo dos tempos (“just to see if it would echo back”) diz justamente o contrário. Isso porque dessa forma ele mostra que a construção da memória da humanidade e da história de sua arte podem até ser motivo de desapontamento, mas ainda assim são processos que merecem interesse e atenção, mesmo de um vampiro como ele. E não é essa uma indagação que comum a todo artista em algum momento? E este filme, como será lembrado?

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