20 de agosto de 2014

Irreversível (Gaspar Noé, 2002)


(caralho, que porrada...)

Gaspar Noé filma esta estória como o Destino com a faca na mão do poema de Arseni Tarkovsky (“Primeiros Encontros”), inquieto, pairando pelo cenário como um espírito maligno à espreita.

E a decisão de encadear as cenas de trás pra frente é genial, porque reforça justamente a impossibilidade de se parar esse espírito maligno, e o fato dos personagens estarem presos nesta armadilha do Destino. Podemos até saber o que acontecerá no futuro, mas somos impotentes diante da inevitabilidade em tudo o que é mostrado. As cenas mais chocantes e perturbadoras podem até estar focadas na primeira parte do filme, mas isso não priva a segunda de impacto próprio, já que ela não é meramente explicativa. Afinal, “explicar” coisas horríveis como as que acontecem no filme é impossível.

O que esse movimento contrário consegue é realçar o sentido de tragédia na coisa toda, colocando um tom de lamento sob os momentos felizes do casal. Nunca os horrores são colocados como punição, ou para fins exploratórios, e sim como uma visão brutal-porém-honesta da fragilidade humana diante de forças que não pode controlar, venham elas de seres humanos ou de coisas além.

Vista na ordem normal, a vingança ganharia mais importância e justificativa, apesar da irônica confusão na identificação do estuprador. E o fato de realmente podermos enxergar as cenas sob um outro olhar por causa da ordem inversa é o maior trunfo do filme.

Narrativa à parte, o uso da técnica de Noé é ótimo, com a forte luz vermelha e o ambiente claustrofóbico fazendo as idas à boate Rectum e ao metrô parecerem verdadeiras descidas ao Inferno. A música também contribui muito para a variação de estados de espírito (moods) do filme, e é essencial para dar aquela sensação hipnótica, catártica, de algo do qual não se pode escapar que é tão preciosa a Noé, que conduz seus filmes como uma experiência extrassensorial ou sinestésica (ou alucinógena) mais do que qualquer outra coisa - ou não usaria vibrações sonoras impossíveis de serem ouvidas na primeira metade do filme para causar uma sensação de náusea no espectador.


Da mesma forma, a câmera passa a ideia de “inescapabilidade” ao seguir os personagens sem trégua, em planos que se alongam por vários minutos, dando a impressão de que um espírito os segue e os observa de perto. Os movimentos são bastante arrojados em alguns momentos, mas as partes mais violentas não são enfeitadas, sendo mostradas com pouquíssimo movimento, de uma forma mais “real”.

Por mais que as imagens possam ser perturbadoras, há uma beleza estranha contida no empenho de Noé de nos levar numa viagem, numa hipnose, mostrando partes sombrias e brutais da natureza humana - facetas que a grande maioria dos diretores finge não existir e acha "negativo" ou "tabu" demais de explorar -, sim, mas não sem apontar para momentos de redenção, como na bela cena final, ou deixar claro seu tom de lamento por trás da provocação. Claro, ver o casal (maravilhosamente) interpretado por Monica Belucci e Vincent Cassel conversando bem-humoradamente sobre seus hábitos sexuais no metrô parece sarcástico de uma maneira nada agradável, considerando o que se passou antes disso (narrativamente falando, não temporalmente), mas isso não significa que Noé seja um sádico, ou alguém com uma visão totalmente fria. 

Sim, é preciso ser incrivelmente frio para manter a câmera parada filmando (ou encarando) uma personagem ser brutalmente estuprada, mas essa frieza se faz necessária e é até bem-vinda a partir do momento em que o filme consegue ultrapassar essa brutalidade (da qual muitos desviam o olhar) para explorar a existência humana em sua efemeridade, selvageria e até beleza.

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