18 de agosto de 2014

O Homem Errado (Alfred Hitchcock, 1956)


Desprovido do glamour e da pompa vindos das “classes altas” ou o clima de sedução que marcam a maioria dos filmes de Hithcock dos anos 1950, este longa é provavelmente o mais duro e cru de toda a filmografia do diretor, sendo ou não “baseado em fatos reais”. Nem mesmo o típico humor britânico (ou mórbido-porém-espirituoso) de Hitch tem vez aqui. Sua aparição-relâmpago é logo no começo do filme, num tom sombrio, anunciando um filme baseado numa realidade mais estranha que a ficção. O filme tem duas cenas com risos de personagens, mas nenhum deles é provocado por um motivo propriamente engraçado: a primeira vem das meninas anunciando tragicamente que um homem que poderia ser uma testemunha-chave morreu, e a outra é uma gargalhada nervosa de Rose – talvez o princípio de seu colapso nervoso – quando se sabe que outra possível testemunha está morta.

O modo como Hitchcock consegue parecer tão duro, mais do que através do roteiro, é por meio de uma estética que prioriza a perspectiva em primeira pessoa e a transmissão da visão dos personagens – principalmente do personagem principal, Manny - como em poucos filmes de Hitch. Assim, as imagens são essenciais para contar a estória e muitas vezes são mais importantes ou eficazes nisso que os próprios diálogos. Um exemplo é a ótima cena logo no começo do filme em que Manny vai à agência e a edição sugere desconfiança e medo por parte dela, sem diálogos, usando apenas o bom e velho efeito Kuleshov. O diretor filma esse tipo de ação com maestria, com vários planos destacando algemas, grades e cadeados (remetendo à prisão), ou coisas menos óbvias mas igualmente “eficientes” como os sapatos maltrapilhos dos homens à caminho da prisão e a mão manchada com tinta preta após o recolhimento das digitais. Todos esses são elementos aparentemente simples, mas que sugerem bem a angústia de um homem inocente diante do horror da prisão.


Mas por mais que as imagens sejam importantes ou o silêncio seja usado com frequência, não há como negar o ótimo trabalho de Bernard Herrmann na trilha sonora do filme. Assim como Hitch, aqui o compositor deixou de lado parte da sofisticação e elegância de seu estilo em favor de uma abordagem mais enxuta. O resultado é uma trilha que, além de transmitir o medo e receio de Manny, lembra frequentemente o espectador do tom duro e quase sombrio do filme. A cena da primeira noite de Manny na cela, em particular, mostra um casamento maravilhoso da trilha com a imagem, quando a câmera gira desnorteada e a música dá loops cada vez mais desesperados enquanto Manny agoniza dentro da cela, num momento digno dos melhores filmes de Hitchcock.

Toda essa crueza e tragédia marcam uma diferença clara deste filme com longas similares de Hitch. Ladrão de Casaca (1955) e Intriga Internacional (1959) são exemplos de filmes em que o protagonista é acusado de algo que não fez por azar ou “destino” e se vê obrigado a provar sua inocência. Mas enquanto os protagonistas dos filmes citados são charmosos, confiantes e capazes de proezas dignas de um James Bond, Manny é modesto, humanamente frágil, apesar de determinado, e impotente diante dos infortúnios que o destino lhe prega. Até seus pares românticos diferem. Se as mulheres de Cary Grant nos filmes citados são sedutoras, perigosas, e ajudam o protagonista apesar de serem “donzelas indefesas” até certo ponto, a mulher de Manny, Rose, é terrena, amorosa, centrada na família, até o momento em que tem um colapso nervoso e adiciona mais requintes de crueldade ao destino de Manny.


De certa forma, as diferenças entre esses filmes também parecem tornar O Homem Errado mais próximo de Hitch. Cary Grant é o que Hitchcock queria ser: seguro, galanteador e atraente, enquanto Henry Fonda parece estar mais próximo do que Hitch realmente é: um homem honesto, mas atribulado e com uma grande carga de sentimento de culpa. Talvez essa até seja uma das razões para a grande quantidade de planos em 1ª pessoa do filme: a maior empatia entre diretor e protagonista. O fato de Hitchcock ter sido preso pelo próprio pai numa cela de cadeia quando criança adiciona mais um grau de empatia entre os dois. Outro ponto que aproxima o filme da experiência pessoal de Hitch é a iconografia religiosa, presente como poucas vezes na carreira do diretor, principalmente através de planos fechados de terços e ícones. Sendo um católico de natureza cética, o diretor parece se identificar com Manny, um cristão convicto que quase perde a fé após tantas desgraças mas que ainda quer acreditar. A própria decisão de Hitch de bancar o projeto, apesar da sua aparente falta de rentabilidade, também aproxima filme e diretor.

Assim, esse pode até não ser o filme mais sedutor, divertido ou cheio-de-suspense de Hitchcock, talvez nem parecendo um clássico filme de Hitch, mas é provavelmente o mais pessoal, reforçando seu status de autor, e de alguém que não deixava de colocar suas experiências pessoais na tela e usá-las para influenciar seu modo de expressão ou estética, por mais que seus filmes pudessem parecer obras de um diretor manipulativo mais preocupado com a diversão do público do que com qualquer outra coisa.

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