Desprovido do
glamour e da pompa vindos das “classes altas” ou o clima de sedução que marcam
a maioria dos filmes de Hithcock dos anos 1950, este longa é provavelmente o
mais duro e cru de toda a filmografia do diretor, sendo ou não “baseado em
fatos reais”. Nem mesmo o típico humor britânico (ou mórbido-porém-espirituoso)
de Hitch tem vez aqui. Sua aparição-relâmpago é logo no começo do filme, num
tom sombrio, anunciando um filme baseado numa realidade mais estranha que a
ficção. O filme tem duas cenas com risos de personagens, mas nenhum deles é
provocado por um motivo propriamente engraçado: a primeira vem das meninas
anunciando tragicamente que um homem que poderia ser uma testemunha-chave
morreu, e a outra é uma gargalhada nervosa de Rose – talvez o princípio de seu
colapso nervoso – quando se sabe que outra possível testemunha está morta.
O modo como Hitchcock
consegue parecer tão duro, mais do que através do roteiro, é por meio de uma
estética que prioriza a perspectiva em primeira pessoa e a transmissão da visão
dos personagens – principalmente do personagem principal, Manny - como em
poucos filmes de Hitch. Assim, as imagens são essenciais para contar a estória
e muitas vezes são mais importantes ou eficazes nisso que os próprios diálogos.
Um exemplo é a ótima cena logo no começo do filme em que Manny vai à agência e
a edição sugere desconfiança e medo por parte dela, sem diálogos, usando apenas
o bom e velho efeito Kuleshov. O diretor filma esse tipo de ação com maestria,
com vários planos destacando algemas, grades e cadeados (remetendo à prisão),
ou coisas menos óbvias mas igualmente “eficientes” como os sapatos maltrapilhos
dos homens à caminho da prisão e a mão manchada com tinta preta após o
recolhimento das digitais. Todos esses são elementos aparentemente simples, mas
que sugerem bem a angústia de um homem inocente diante do horror da prisão.
Mas por mais que
as imagens sejam importantes ou o silêncio seja usado com frequência, não há
como negar o ótimo trabalho de Bernard Herrmann na trilha sonora do filme.
Assim como Hitch, aqui o compositor deixou de lado parte da sofisticação e elegância
de seu estilo em favor de uma abordagem mais enxuta. O resultado é uma trilha
que, além de transmitir o medo e receio de Manny, lembra frequentemente o
espectador do tom duro e quase sombrio do filme. A cena da primeira noite de
Manny na cela, em particular, mostra um casamento maravilhoso da trilha com a
imagem, quando a câmera gira desnorteada e a música dá loops cada vez mais desesperados enquanto Manny agoniza dentro da
cela, num momento digno dos melhores filmes de Hitchcock.
Toda essa crueza
e tragédia marcam uma diferença clara deste filme com longas similares de
Hitch. Ladrão de Casaca (1955) e Intriga Internacional (1959) são
exemplos de filmes em que o protagonista é acusado de algo que não fez por azar
ou “destino” e se vê obrigado a provar sua inocência. Mas enquanto os
protagonistas dos filmes citados são charmosos, confiantes e capazes de proezas
dignas de um James Bond, Manny é modesto, humanamente frágil, apesar de
determinado, e impotente diante dos infortúnios que o destino lhe prega. Até
seus pares românticos diferem. Se as mulheres de Cary Grant nos filmes citados
são sedutoras, perigosas, e ajudam o protagonista apesar de serem “donzelas
indefesas” até certo ponto, a mulher de Manny, Rose, é terrena, amorosa, centrada
na família, até o momento em que tem um colapso nervoso e adiciona mais
requintes de crueldade ao destino de Manny.
De certa forma,
as diferenças entre esses filmes também parecem tornar O Homem Errado mais próximo de Hitch. Cary Grant é o que Hitchcock
queria ser: seguro, galanteador e atraente, enquanto Henry Fonda parece estar
mais próximo do que Hitch realmente é: um homem honesto, mas atribulado e com
uma grande carga de sentimento de culpa. Talvez essa até seja uma das razões
para a grande quantidade de planos em 1ª pessoa do filme: a maior empatia entre
diretor e protagonista. O fato de Hitchcock ter sido preso pelo próprio pai
numa cela de cadeia quando criança adiciona mais um grau de empatia entre os
dois. Outro ponto que aproxima o filme da experiência pessoal de Hitch é a
iconografia religiosa, presente como poucas vezes na carreira do diretor,
principalmente através de planos fechados de terços e ícones. Sendo um católico
de natureza cética, o diretor parece se identificar com Manny, um cristão
convicto que quase perde a fé após tantas desgraças mas que ainda quer
acreditar. A própria decisão de Hitch de bancar o projeto, apesar da sua
aparente falta de rentabilidade, também aproxima filme e diretor.
Assim, esse pode
até não ser o filme mais sedutor, divertido ou cheio-de-suspense de Hitchcock,
talvez nem parecendo um clássico filme de Hitch, mas é provavelmente o mais
pessoal, reforçando seu status de autor, e de alguém que não deixava de colocar
suas experiências pessoais na tela e usá-las para influenciar seu modo de
expressão ou estética, por mais que seus filmes pudessem parecer obras de um
diretor manipulativo mais preocupado com a diversão do público do que com
qualquer outra coisa.
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