As aparências podem enganar. Quem vê a carinha bonita de Leandra Leal no começo do filme (ou melhor dizendo, nas cenas do começo da linha do tempo do filme) e entra no filme com praticamente nenhuma informação prévia (como eu) nunca imaginaria que, até o final, ela faria um trajeto pessoal até o inferno. É impressionante observar a atriz revelar e desenvolver as máscaras e demônios de sua personagem ao longo de O Lobo Atrás da Porta (Fernando Coimbra, 2012), e mais impressionante ainda porque ela é tratada pelo diretor sem julgamentos moralistas, com respeito, como uma pessoa como as outras, capaz de cometer erros e tomar caminhos errados na vida, o que torna as ações de Rosa mais reais (e por isso impactantes) e menos resultantes de um caráter maléfico ou vilanesco intrínseco à personagem. Claro, a trilha sonora misteriosa e sombria (e gravíssima, aliás, testando o sistema de som do São Luiz) já na abertura dá uma ideia de que coisas graves acontecerão (perdoe o trocadilho), mas ainda sim está longe de prevenir ou preparar o espectador desavisado para a jornada emocional (com eventuais socos no estômago) em que ele embarcará.
Antes que eu me
torne injusto, não só Leandra Leal como Milhem Cortaz (no papel de Bernardo, o
marido adúltero) e Fabiula Nascimento (como Sylvia, a mulher traída) estão
muito bem no filme, e parte dos créditos podem ir para o trabalho de Fernando
Coimbra (e equipe), não só na preparação de elenco em si como na maneira como
as cenas foram filmadas. Há uma quantidade considerável de tomadas que se
estendem por um minuto ou mais, que lembram o húngaro Béla Tarr (mestre das
tomadas longas) com seu rigor e ausência de ângulos ou movimentos muito
rebuscados, principalmente nas cenas em que a câmera acompanha Rosa e Clarinha
vagando sem rumo pela cidade, como em Satantango
(Béla Tarr, 1994). É através dessas tomadas que Coimbra consegue performances
tão especiais dos atores, já que elas possibilitam que as emoções sejam
expressas aos poucos e através de uma exposição prolongada dos atores à câmera,
e não de uma sequência de reações pré-programadas feita em montagem, o que
possibilita a captação de nuances e detalhes que passariam despercebidos de
outra forma. Essas tomadas também conseguem prender a atenção do espectador e
manter a tensão das cenas de maneira bastante eficiente, como quando Rosa
parece estar abandonando a menina Clarinha no bar por alguns segundos ou quando
Sylvia conta a ela da melhora na relação com o marido após o começo da amizade
das duas e temos que esperar o balanço girar por uns momentos até poder ver sua
reação.
Outra coisa que
chama a atenção é o modo como a narrativa é quase que inteiramente construída
através dos relatos (ou testemunhos) de Bernardo e Rosa, que aprendemos não
servir como verdade absoluta por representarem interesses e pontos de vista
pessoais e às vezes contraditórios. O modo como as estórias parecem não se
encaixar em certos pontos lembra a narrativa multifacetada de Rashomon (Akira Kurosawa, 1950), e há
até uma tomada mostrando o Sol por entre as copas das árvores de uma floresta
assim como no clássico japonês.
Os diálogos
podem até serem “infiltrados” por um humor irônico e típico da malandragem
carioca, e as cenas de “amor” entre Rosa e Bernardo podem distrair um pouco
(apesar de servirem como contraste para as cenas entre Bernardo e Sylvia,
sempre gélidas e tensas), mas isso não significa que o filme não mostre
sensibilidade para os momentos mais pesados e sujos. A queda de Rosa é
conduzida com tanta frieza e agudez (cruciais para dar à expressão impassível
de Leandra Leal no momento derradeiro o impacto necessário) que um ou outro
pode até soltar uma exclamação ou suspirar de alívio no fim, mas ninguém
sorrirá.
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