Depois de cinco ou dez minutos de filme (é difícil dizer com
certeza), surpresa!, eis que surgem os créditos iniciais, junto com a voz de
Milton Nascimento na bela “Tudo Que Você Podia Ser”, que dá início ao lendário
álbum Clube Da Esquina (1972). Susto
à parte, essa demora até que faz sentido. O filme só começa realmente quando a
adolescente Cris se percebe só ao ver que seu irmão a abandonou no meio da
estrada, deixando-a incontestavelmente como personagem principal do filme.
A partir daí, Cris se vê perdida num mundo que para ela
parece estranho e potencialmente hostil, e ao qual ela é completamente
alienada, como se não soubesse da existência dele até então. E não é pra menos. Sendo uma adolescente de classe média-alta da Zona Norte recifense, Cris é levada a conviver com pessoas (empregadas domésticas e suas filhas, moradores de acampamento do MST, etc) com quem ela só teria contato nos noticiários e nas cozinhas e quartos-de-empregada dos apartamentos. Desse modo, ela passa a se dar conta de amarras nela mesma que ela desconhecia até então, amarras das quais ela vai tentando se
libertar aos poucos no decorrer de sua jornada.
Esse processo de amadurecimento e auto-descoberta é trabalhado
pacientemente pelo diretor Marcelo Lordello, através de uma série de encontros
de Cris com pessoas que percebem a realidade ao seu redor de maneira bem diferente da dela, com a protagonista
se comportando numa mistura entre alguém que tenta se proteger do
ambiente ao seu redor e alguém que percebe que precisa dos outros para
sobreviver. O que Cris consegue aprender e extrair de cada um desses
personagens pode até parecer óbvio a princípio, mas essas “lições” nunca são
abordadas de maneira moralista ou didática. Pelo contrário, o ritmo cadenciado,
quase meditativo do filme torna essas conversas
mais autênticas e interessantes justamente por seguirem por caminhos de mais
curvas que retas, por assim dizer, revelando aos poucos a personalidade de
Cris e os modos como ela se adapta às situações.
Sustentando tudo isso está o bom trabalho de Maria Luiza
Tavares - que interpreta Cris -, uma “não-atriz” que convence justamente pelo
que não atua. Ou seja, sua falta de
preparação profissional a torna desprovida de trejeitos e dramatizações típicas
de atores, visíveis especialmente nos mais jovens, o que a faz parecer mais
tímida, insegura e lacônica, e torna suas expressões mais difíceis de decifrar,
o que é justamente o que a personagem precisa. Não que ela não atue bem e
ponto... seus olhares em especial são bastante expressivos e convincentes.
Acompanhando a menina a todo o tempo está a câmera do
competente Ivo Lopes Araújo, que passa muito bem sensações de solidão,
estranheza e alienação através de suas imagens. Quando Cris passeia por
lugares estranhos a ela, a câmera até passa uma visão limitada e estrangeira
das paisagens, principalmente as partes mais pobres da Zona da Mata pernambucana. Para isso, Cris é filmada geralmente numa proximidade quase
desconfortável e claustrofóbica, enquanto “o outro” aparece frequentemente
desfocado ou em posição desfavorável no quadro. Mas o filme é justamente sobre
como a relação da menina com esse “outro” vai mudando ao longo de seu
amadurecimento, então o modo como essas pessoas são filmadas também se altera,
se tornando mais equilibrada e focada.
Mas claro, este é o primeiro longa de Lordello, e ele não
deixa de cometer alguns deslizes (mais técnicos que qualquer outra coisa). Com tantas
tomadas longas (algumas se estendendo por alguns minutos), é quase inevitável
que algumas pareçam se alongar por mais tempo que o necessário, o que acontece
principalmente pela combinação entre silêncio e falta de movimentação no quadro
(ou seja, dificuldade de manter o interesse). Às vezes o ritmo também parece
acelerar além da conta, tornando o diálogo mais direto que o necessário (ou que
o estabelecido pelo próprio filme), principalmente depois que Cris volta pra
casa. Em outros momentos, é o áudio dos diálogos que não soa claro,
dificultando um pouco a compreensão, ou as imagens ficam tremidas de um jeito
estranho. Enfim, isso é compreensível considerando o orçamento baixo do filme.
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