29 de maio de 2015

Slacker (Richard Linklater, 1991)

Assim como Estranhos No Paraíso (Jim Jarmusch, 1984) fez alguns anos antes, Slacker (Richard Linklater, 1991) parece soar como um ressonante “Yes, we can” para o que se convencionou chamar de cinema independente americano através da realização de um único diretor. Slacker é um filme que transmite a cada plano uma sensação de liberdade, juventude, talvez até imaturidade.


Até porque é difícil enxergar de outra forma algumas “complicações” técnicas do filme como microfone aparecendo, dublagens mal mixadas ou sincronizadas, movimentos de câmera chamativos – típico de diretor que está começando e quer mostrar serviço. No entanto, é até estranho colocar esses detalhes como erros, porque o filme não parece preocupado com a possibilidade de parecer amador, considerando a quantidade de cenas filmadas com câmeras típicas de filmes amadores, com imagens de qualidade baixa e reminiscentes de filmes em Super 8 (só para citar um tipo de tecnologia mais conhecida). Aliás, colocar essas complicações como errados soa até errado. Para Linklater, estas limitações são oportunidades para demonstrar as formas que os jovens do filme têm de exercer sua liberdade e se expressar de formas não abraçadas pelos padrões da sociedade em que vivem - se mesmo assim você ver estas coisas como erros, basta lembrar que o filme foi realizado com um orçamento de aproximadamente 23 mil dólares para pelo menos tornar as complicações “compreensíveis”.

Até por uma questão de lógica, o monólogo do personagem interpretado pelo próprio Linklater logo no início do filme acaba ditando o tom e o ritmo de todo o filme, com ele falando com um taxista sobre as infinitas realidades criadas a partir de cada escolha que tomamos, o poder da possibilidade e outras viagens semelhantes. A partir daí, o que se segue é uma série de vinhetas curtas com os mais variados tipos de pessoas aleatórias, entre desocupados, loucos, solitários, obcecados por teoria da conspiração, pretensos artistas, velhinhos solitárias, gurus, roqueiros frustrados e garotas independentes, falando sobre os assuntos mais variados e aleatórios de forma descompromissada e verborrágica, parecendo que passaram toda a sua vida refletindo e formando seus devaneios e teorias loucas sobre a sociedade moderna, daquele jeito despretensioso mas envolvente que é marca dos filmes de Linklater, de Boyhood (2014) a Antes do Amanhecer (1995).


A câmera segue essas pessoas obsessivamente, escolhendo entre qual pessoa seguir (já que os diálogos sempre terminam com as pessoas se separando ou uma pessoa tomando outro rumo e encontrando outras pessoas) como se tentasse descobrir por conta própria todas as possibilidades de realidade que existem depois de ouvir o monólogo do início. As transições entre essas vinhetas variam entre um movimento lateral de câmera simples e suave e algumas mudanças de perspectiva meio desajeitadas, mas geralmente parecem fluidos, como que pertencentes a um observador curioso passando pela rua. De qualquer modo, o mais importante para essas transições não é uma demonstração de ou qualquer tipo de elaboração complexa, e sim a tentativa de fazer os espectadores entrarem no espírito da coisa e passarem a torcer para a câmera acompanhar um determinado personagem em detrimento de outro após um diálogo.

Por mais que tentem colocar este filme como algum tipo de representante de determinada geração de jovens americanos (mais especificamente a geração dos anos 1990), Slacker me parece mais uma busca (e os próprios movimentos da câmera reforçam esta ideia de procura) por dar voz às pessoas às margens da sociedade capitalista americana da época (algumas por escolha, outros por imposição) e fora do esquema de “consuma-trabalhe-case-tenha-filhos-durma-não questione autoridade”. Claro, não há como negar que o filme se concentre em jovens ou que pareça jovial, mas aqui a juventude aparece mais como um estado de espírito do que propriamente como idade, considerando que alguns dos personagens mostrados são idosos e parecem tão deslocados da sociedade e tão cheios de ideias loucas na cabeça quantos os jovens.


E, ao fazer isso, o filme de Linklater já mostra aquela que talvez seja a principal e mais importante característica dos filmes do diretor: sua empatia, sua atenção ao ouvir o que as pessoas têm a dizer, e sua crença no quanto deixar elas botarem seus devaneios para fora é importante. De quebra, ao utilizar esta abordagem em pessoas aleatórias nas ruas enquanto nega a existência de personagens principais, Linklater mostra, justamente através do caráter errático e irregular do filme, a imensidão de possibilidades que se abrem quando se tenta conhecer ou iniciar um diálogo com pessoas aleatórias que passam despercebidas pelas nossas vidas, e as coisas preciosas que podem surgir a partir disso. 
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Os Amantes (Louis Malle, 1958)

Em Os Amantes (1958), o diretor francês Louis Malle se propõe a construir este filme sob a visão e perspectiva de sua protagonista, Jeanne, interpretada pela atriz Jeanne Moreau. Ok, até aí tudo bem. Na prática, isso significa que Malle se atém à visão de uma personagem incuravelmente sonhadora, que busca fugir de um casamento falido com um marido desprovido de afeto através dos encantos de seu amante espanhol e dos luxos supérfluos da alta sociedade parisiense. Ok.


O problema é que, através desta proposta, o diretor parece absolutamente confortável em reproduzir sem praticamente nenhum indício de crítica uma visão ultrapassada da sexualidade feminina que podia parecer transgressora e chocante em Madame Bovary (livro de Gustave Flaubert de 1857) pelo simples fato de abordar o adultério de uma mulher através da perspectiva dela, mas que me parece completamente datada e retrógrada em 1958, e ainda mais em 2015. Para ficar no campo da literatura, Anna Karenina, de Liev Tolstói, lançado apenas 20 anos depois de Madame Bovary e aproximadamente 80 anos antes de Os Amantes, também trata da história de uma mulher que abandona sua família e sua vida social repleta de riquezas para tentar uma vida ao lado de seu amante, apenas para ver esse sonho ruir pouco depois. O final de Anna Karenina é muito mais trágico que o de Os Amantes, ok, mas o livro de Tolstói me parece muito mais justo com sua personagem principal, explorando incansavelmente seus conflitos internos e devaneios de uma forma que transparece empatia e até afeto, sem uma perspectiva machista (pelo menos não que eu me lembre). Meu Deus, basta lembrar de Mônica e o Desejo (Ingmar Bergman, 1953) e ...E Deus Criou A Mulher (Roger Vadim, 1956), dois filmes que vieram antes de Os Amantes e parecem muito mais justos e libertários que Os Amantes em seu tratamento da sexualidade feminina, principalmente o filme de Bergman.

Aliás, Jeanne sofre do que eu chamaria de “síndrome de Madame Bovary”, sendo uma mulher que, seduzidas por promessas de um grande amor vindas de seu amante charmoso, só consegue se sentir plenamente feliz quando está ao lado de um homem (ou, na prática, subordinada a ele), como se sua felicidade fosse pra sempre atrelada ao homem. No filme, isto é reiterado a um nível quase ridículo, com Jeanne não se mostrando capaz de escolher um vestido por conta própria sem parar para pedir a aprovação do marido.


Assim, o diretor desenvolve sua narrativa com poucos insights sobre os sentimentos conflituosos e complexos de Jeanne, e critica sua situação com ainda menos empenho. A própria forma de apresentar esses insights já parece preguiçosa e equivocada, com voiceovers gravados pela própria Jeanne Moreau falando da personagem no passado, de um jeito que praticamente não demonstra qualquer tipo de reflexão posterior sobre os acontecimentos e soa até falsa, assim como é o estilo de atuação over de praticamente todos os atores do filme. Algumas exceções até aparecem em certos momentos, como quando Jeanne se mostra duvidosa sobre suas ações (principalmente no fim do filme), mas ainda assim de uma forma que parece falsa e vazia.

No fundo, esta deficiência também acaba demonstrando uma incapacidade do diretor de tornar os personagens mais profundos e surpreendentes e menos estáticos que atinge todos os cinco personagens principais. Jeanne é a que mais escapa disso, até pela atenção dada a ela (até por causa da devoção que o diretor sentia pela atriz, visível em cada close-up e que às vezes parece vinda da perspectiva de um mortal observando uma deusa), mas é difícil dar crédito quando seu momento de suposta libertação (quando ela escapa de sua própria casa e do relacionamento com o marido) não é nada mais do que uma nova submissão, composto por declarações de amor recheadas de clichês e que passam longe de convencer, umas músicas de Brahms para dar um ar de sofisticação e alta arte ao filme e uma direção de fotografia que tenta ser tão pretensiosamente bela e brilhante (literalmente) que acaba beirando o ridículo.


Claro, não se pode culpar Jeanne Moreau por isso, considerando que seu rosto exprime muito mais complexidade e honestidade que os diálogos ou voiceovers ou qualquer coisa escrita no roteiro. No fim das contas, ela tenta fazer bem o que lhe é exigido. No entanto, não deixa de ser impressionante (e reconfortante) o quanto ela parece melhor e mais convincente alguns anos depois em Jules e Jim (François Truffaut, 1962), onde interpreta uma mulher que abraça sua singeleza e autonomia e se vê livre da tal “síndrome de Madame Bovary”. 
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