*de César Castanha, do blog Milos Morpha
Se é verdade
que cada país, etnia ou cultura tem o seu mito de fundação, uma lenda que
justifique a miscigenação e os povos constituintes do discurso nacional, pode
ser também verdade que no século XX procurou-se a expressão cinematográfica
desse mito. Ora, em alguns casos vê-se bastante claro: a obra-prima Os Nibelungos (Fritz Lang, 1924) utiliza-se
de cinco horas dos mais espetaculares recursos estéticos e narrativos do cinema
mudo para traduzir às telas o poema que explica os germânicos como povo, e os
americanos têm lá sua cota cinematográfica de peregrinos à conquista do Oeste.
Trago exemplos
do momento inicial do cinema para ter a licença de supor que, pela lógica, a
Itália entraria nesse balaio com os épicos Cabiria
(Giovanni Pastrone, 1914) e Quo Vadis?
(Enrico Guazzoni, 1913), o primeiro atesta pela razão romana nas Guerras
Púnicas, o segundo une um soldado de Nero a uma prisioneira cristã — não se
consegue ser muito mais fundação que
isso.
A Itália que
poderia ser justificada nesses épicos, no entanto, não vai além de Mussolini. A
Segunda Guerra Mundial e o movimento de Liberação que a seguiu parecem ter
surtido tamanha mudança na estrutura social e humana italiana que demandou-se
uma nova forma de narrar o país. Se assim for, o neorrealismo italiano
contempla uma segunda fundação da Itália.
Mas acreditar que
o neorrealismo italiano apenas contempla essa nova Itália pode ser muito
ingênuo. Afinal, Paisà (Roberto
Rossellini, 1946) é extremamente simpático aos americanos, e Roma, Cidade Aberta (Roberto Rossellini,
1945) cultiva algumas figuras martirizadas — sem falar no embasamento técnico do
gênero, que influenciou todo tipo de movimento pela renovação do cinema nos
anos 1960. Mas os filmes, como posicionamentos políticos, só vão até o afeto
pela humanização da Itália do pós-Guerra e a repulsa à ocupação alemã.
Em
contemplação às ruínas concretas e humanas da Itália, tipos como Roberto
Rossellini, Vittorio de Sica e Alberto Lattuada construíram e consolidaram seu
cinema, em que o que se destaca é a absurda realidade dos personagens. A
relação com a Segunda Guerra Mundial nem sempre é feita tão diretamente quanto
em Paisà, às vezes ela está presente
em sua ausência — Ladrões de Bicicleta
(Vittorio de Sica, 1946) — ou pode ser sutil e firmemente sugerida — O Bandido (Alberto Lattuada, 1946).
Talvez por
apreciar essa sua posição de meio termo eu termine por considerar O Bandido o grande representante do
gênero. O enredo, simples (poderia-se dizer, com certa razão, simplista), aproxima
o filme do americano Os Melhores Anos de
Nossas Vidas (William Wyler, 1946). Quando dois amigos combatentes voltam
para casa, um tenta reconstruir a vida com sua filha, o outro enfrenta a
frustração e desesperança generalizadas na vida urbana da nova Itália.
As diferenças
nas condições sociais e, talvez principalmente, geográficas (no sentido que a
estrutura arquitetônica concreta e imagética de um escapou ilesa) entre os EUA
e a Itália é o que afasta os dois filmes para a quase impossibilidade de
associação. O que está derrotado e perdido em Os Melhores Anos de Nossas Vidas é a vida daqueles que combateram e
o tempo irrecuperável, que sente-se inútil. Não há essa ideia de tempo perdido
em O Bandido. A Guerra, embora
repudiada narrativamente, foi genuinamente significativa para os personagens.
Aqueles que ficaram, porém, parecem ter sentido a Guerra com maior intensidade.
É como se os combatentes italianos não compreendessem a dor de ficar. Por sua
vez, as famílias americanas não entendem a dor de ir e voltar.
Acusei o
enredo de O Bandido de simplista com
pouca ou nenhuma intenção perjorativa. O simplismo do argumento pode ser até
uma marca do neorrealismo italiano. Há uma contradição entre a figura exaltada
do homem, indivíduo particular, e a representação das massas, que é
especialmente negativa (o coletivo é sempre mesquinho e preconceituoso). Isso pode
ser percebido em outros filmes do gênero, até de forma mais evidente — penso
nas vizinhas fofoqueiras de A Culpa dos
Pais (Vittorio de Sica, 1944).
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